segunda-feira, 30 de maio de 2011

Médico paulista propõe mutirão para enfrentar o uso de drogas no País

Danilel Cruz compôe a equipe docente do CRR-IFPB

O médico psiquiatra, Daniel Cruz Cordeiro, Coordenador de uma Enfermaria para Dependentes Químicos, no Hospital Lacan, em São Bernardo do Campo, no interior de São Paulo, com 70 pacientes (40 homens e 30 mulheres), e integrante da equipe médica da Santa Casa de Misericórdia na Capital paulista, afirma que há uma epidemia de uso de crack no País e que a discordância entre autoridades e cientistas sobre esse problema é um fator meramente politico.

Daniel Cruz esteve em João Pessoa, no último final de semana (26/27), para ministrar aulas sobre saúde mental e uso de drogas nos cursos do CRR-IFPB – Centro Regional de Referência para Formação Permanente de Profissionais da Rede de Atenção a Usuários de Crack e outras Drogas. O projeto financiado pela SENAD-Secretária Nacional de Políticas sobre Drogas, do Ministério da Justiça, faz parte das estratégias de formação do Plano Nacional de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas.
O médico, que é uma liderança nacional na área de tratamento da dependência química, com mestrado na Inglaterra nessa área, concedeu entrevista ao jornalista do CRR-IFPB, Crisvalter Medeiros.

A maior preocupação com o crack é que ele está criando no Brasil uma cultura “junkie” que não existia antes”, Daniel Cruz Cordeiro.
A ENTREVISTA

Crisvalter: Professor Daniel, existe, atualmente, uma polêmica sobre o uso de crack no País: as autoridades negam e os pesquisadores afirmam que há uma epidemia. Qual a sua opinião?

Daniel Cruz: Em minha opinião, o principal fator para essa discordância ocorre no âmbito político. Não precisa trabalhar na área da saúde, qualquer pessoa leiga percebe o quanto aumentou o uso de crack e outras drogas semelhantes pela população como um todo. Mesmo nos menores municípios brasileiros há muita preocupação com o uso do crack. Recentemente, eu estive no interior de Minas Gerais, numa cidade bem pequena chamada Piuí. No dia em que cheguei a manchete do jornal local informava que a polícia tinha flagrado um menino de 15 anos com 150 pedras de crack para vender. Há epidemia sim, e ela é preocupante.

Crisvalter: Neste caso o que é mais urgente fazer?

Daniel Cruz: O maior problema, nesse sentido, é que a área política não está se entendendo com a área científica. Acho que não tem mais desgraça para ser anunciada nas manchetes de TV, agora é hora de mostrar os número da saúde pública, pois já perdemos o fio da meada e temos que correr atrás do prejuízo. Durante muito tempo se empurrou o problema daqui e dali; agora já não podemos mais perder tempo. Vale esclarecer que o crack começou a aparecer mais nas cenas da televisão quando a classe média começou a ser invadida pelo seu uso. Enquanto a substância era usada apenas por mendigos e moradores de rua, menores abandonados, etc, a coisa não chamava a atenção, não virava capa de revista; mas quando o usuário passou a ser uma figura do porte do ator global Fábio Assunção, quando o filho do médico, as pessoas que tem dinheiro começaram a usar, então o problema teve uma maior visibilidade.

Crisvalter: A classe média dá preferência ao crack?

Daniel Cruz: Não é que ela prefira, é que o crack, por ser uma droga muita barata, era mais usada pelas pessoas que não tinham dinheiro. Quem experimenta o crack, atualmente, também o faz com a cocaína ou outra droga, a questão é a alta potencialidade de causar dependência que o crack apresenta. Recentemente, recebi uma médica na enfermaria e ela me disse: “Doutor, não somos nós que escolhemos a droga, mas é ela que nos escolhe”.  Essa médica revelou que estava em uma festa e experimentou um cigarro mesclado (maconha e crack) e descobriu naquela noite que o barato do mesclado era bom e foi levada pela curiosidade a experimentar o crack separadamente. Agora ela é uma médica dependente de crack.

Crisvalter: Até os médicos estão usando crack?

Daniel Cruz: O crack não discrimina ninguém, ela é uma droga bastante democrática. A classe econômica e o status intelectual não impediram que ela (a médica) se tornasse uma dependente dessa droga.

Crisvalter: Daniel, qual é o principal risco para o usuário de crack?

Daniel Cruz: A maior preocupação com o crack é que ele está criando no Brasil uma cultura “Junkie” que não existia antes. A diferença é que o crack trouxe essa realidade de quem rouba, de quem se prostitui e de quem mata, de quem estupra, de quem usa de uma forma dizimante. Nós constatamos que em pouquíssimo tempo, as pessoas saem de uma situação de estabilidade financeira, equilíbrio emocional, constituição familiar, competência profissional, para uma realidade de fundo de poço, onde literalmente elas afundam. Essa realidade existe nos países da América do Norte e da Europa com os usuários de heroína. No Brasil não tínhamos nada parecido, o crack trouxe essa nova realidade, na qual em pouco tempo, as pessoas perdem emprego, família, etc, onde as pessoas perdem totalmente a noção das coisas para se dedicar exclusivamente ao uso da droga. Essa é uma cultura Junkie que está sendo produzida no nosso país. Esse é o maior risco que eu vejo.

Crisvalter: Por outro lado, também existe aquele usuário de crack que estuda e trabalha, consegue ter uma vida social, conforme uma pesquisa sobre o perfil de usuários de crack no Brasil, como você analisa esse usuário?

Daniel Cruz: Essa também é uma situação real. Tem o mito de que quem usa até três pedras de crack vai morar debaixo da ponte. Aparentemente, as pessoas que usam o crack de forma controlada teriam uma menor predisposição para a dependência química. Esse contingente é bem menor do que nós da saúde gostaríamos que fosse. Mas usar crack durante um certo tempo de forma controlada, não significa que esse usuário, no futuro, não vá se tornar também um dependente, ou um junkie. Realmente, tem gente que usa duas ou três pedras de crack numa rodada durante a noite e no outro dia vai trabalhar tranquilamente. O que nós não podemos prevê é quanto tempo esse equilíbrio vai durar.

Crisvalter: Diante desse quadro complexo, o que fazer efetivamente?

Daniel Cruz: É a questão de perguntar de quem é a responsabilidade? Nem só a saúde, nem só a política vai resolver isso. Precisamos, e é urgente, fazer um mutirão da dependência química no Brasil envolvendo todas as áreas. Esse mutirão deve se iniciar na base com a prevenção e orientação na escola fundamental e se expandir para os altos escalões da política pública do nosso país; as soluções que vemos são uma intervenção, uma internação em uma clínica ou comunidade terapêutica, mas isso já é o fim da carreira, a atenção deve começar bem antes.

Crisvalter: Nessas intervenções você inclui equipamentos comunitários como o AA, Ala-Non, NA, Amor Exigente?

Daniel Cruz: Exatamente. Por muito tempo a ciência e os grupos de mútua ajuda andaram separados, mas nós entendemos que não dá para separar mais essas coisas. Nossas chances de ser efetivos incluindo esses grupos aumentam bastante. Precisamos associar a medicina, a psicologia, o trabalho teórico, com a questão da mudança de  comportamento que pode ser alcançada com a participação em um grupo de mútua ajuda.

Crisvalter: Se você tivesse o poder de decidir sobre políticas públicas no Brasil, para essa área, por onde você começaria?

Daniel Cruz: Temos que levar esse problema para as escolas, atualmente, eu até sugeriria uma disciplina para que as crianças possam saber mais, até porque hoje elas estão bem informadas sobre todos esses problemas sociais, e com pouco trabalho elas conseguem entender perfeitamente as consequências do problema das drogas. Eu arriscaria dizer que no Brasil estamos caminhando rápido, mas dando passos para trás, igual àquela dança do Michael Jackson. As pessoas não procuram as drogas simplesmente pelo prazer do uso, isto é um equívoco. Associado a esse problema temos as questões sociais do desemprego e da falta de oportunidades para os jovens. O tráfico de drogas está se tornando, cada vez mais, uma alternativa ocupacional devido a falta de oportunidades, capacitação para mercado de trabalho, políticas de promoção e inclusão social de uma maneira geral. Basta pensar o seguinte: numa favela brasileira qual é a grande chance de emprego, quem é que tem dinheiro, poder... São os traficantes. Precisamos criar outros modelos para essa juventude, senão continuaremos perdendo-a para as drogas.

Crisvalter: Daniel, vamos encerrar, falando sobre essa nova drogas que está surgindo no Brasil, o OXI. Qual sua visão sobre mais esse problema?

Daniel Cruz: Um quilograma (1Kg) de pasta base de cocaína pode produzir um lucro de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais); o mesmo 1kg de pasta base de Oxi, vai produzir um lucro de R$ 120.000,00, ou seja, o narcotráfico ganha mais com o Oxi. Há também a possibilidade de prazer mais rápido, mas também diminui o período de uso para alguém se tornar dependente. Por ser mais barato que o crack, essa nova droga tem possibilidade de causar um impacto duplamente maior na sociedade, a realidade é essa. Se você pensa que a situação está ruim, ela pode piorar ainda mais com a disseminação do uso de Oxi, numa mesma proporção do uso de crack no Brasil.

Crisvalter Medeiros

sexta-feira, 20 de maio de 2011

PARAÍBA TERÁ MESTRADO PROFISSIONAL EM GESTÃO DA REINSERÇÃO SOCIAL DE USUÁRIOS DE DROGA

 
Articulação com docentes da UFRN para construção do MGPRSUD

 

A equipe interinstitucional de professores do Centro Regional de Referência para Formação Permanente de Profissionais da Rede de Atenção a Usuários de Crack e outras Drogas (CRR-IFPB) está enviando à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) uma proposta de Mestrado Profissional em Gestão da Reinserção Social de Usuários de Drogas - MPGRSUD. O mestrado, que será o primeiro do Norte/Nordeste nessa área social, deverá realizar processo seletivo para a primeira turma no próximo semestre letivo, com início das aulas em 2012.

 

A proposta do mestrado atende a uma diretriz do plano nacional de enfrentamento ao crack e outras drogas que definiu como ações estruturantes a capacitação continuada dos profissionais da rede de serviços públicos voltada à atenção aos usuários de drogas. O projeto do Mestrado Profissional em Reinserção Social surgiu com a formação de um grupo de pesquisa interinstitucional articulado pelo CRR-IFPB.

 

A equipe interinstitucional responsável pela elaboração do projeto é constituída pelas professoras-doutoras: Maria Inês Gandolfo, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade de Brasília (UnB); Vânia Gico, do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Maria Aparecida Penso, Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Católica de Brasília (UCB) e Vania Maria de Medeiros, do Instituto Federal da Paraíba.

 

O MPGRSUD terá como público-alvo os trabalhadores da educação, segurança pública, justiça criminal, infância e adolescência e as redes SUS/SUAS. A equipe vai articular uma rede de apoio a auto- sustentabilidade da proposta que incluirá o Governo do Estado, Prefeituras Municipais, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), Instituições Federais de Ensino Superior, Ministério Público, ONGs e entidades privadas.


Segundo a professora Vânia Gico, da UFRN, o projeto terá como área de concentração os estudos técnico-científicos em gestão da reinserção social, com três linhas de pesquisas: Prevenção ao Uso de Drogas nos contextos sócio-educativos; Recuperação Sustentável de Usuários de Drogas e Reinserção Social de Usuários de Drogas.


Na visão da professora Vania Medeiros, coordenadora do CRR-IFPB, a maior relevância deste projeto é a construção de novos paradigmas relacionados à dependência química, focando práticas profissionais e pesquisas aplicadas que visem promover uma maior eficiência nos serviços de atenção à crianças, adolescentes e jovens-adultos em situação de vulnerabilidade para o uso de drogas.


Crisvalter Medeiros

Drogadição e preconceito


O mais urgente a ser feito na área da drogadição, no nosso país, é combater o preconceito contra os usuários e dependentes químicos. A Secretária de Estado do Desenvolvimento Humano da Paraíba, coordenadora do plano estadual de enfrentamento ao crack, professora Aparecida Ramos, captou bem o espírito do problema, quando, já nas primeiras reuniões do fórum “União pela vida contra o crack”, reconheceu a importância de se enfrentar, também, o problema do preconceito e considerar o usuário como alguém que precisa de atenção da saúde pública.

O estigma contra o dependente químico é o resultado da visão deturpada, autoritária e excludente do problema da drogadição, que perdurou por décadas. Primeiro, a dependência química foi vista como resultado de influências de forças sobrenaturais, demoníacas; em seguida, instalou-se a fase da concepção de doença física e mental, cujas pessoas afetadas poderiam transmitir o mal de uma forma epidemiológica. Resultado: essas pessoas infectadas precisavam ser isoladas nas prisões ou nos manicômios.

Passada essa fase mais difícil, introduziu-se o período da medicalização, quando o usuário ou dependente passou a ser alvo da necessidade de atenção de profissionais especializados. Diz o psicólogo americano, William White, consultar da ONG americana “Faces & Voices of Recovery”, que defende os direitos humanos dos usuários de drogas, principalmente a atenção à saúde, que essa visão gerou uma espécie de indústria do tratamento da dependência química nos Estados Unidos.

No Brasil, a fase da medicalização do uso de drogas vem se consolidando rapidamente. Os órgãos governamentais responsáveis pelas políticas públicas sobre drogas têm investido na formação especializada de profissionais para tratamento de usuários de drogas nas instituições de saúde.

A Lei 11.343, de 2006, é bem mais branda, do ponto de vista das concepções preconceituosas e autoritárias relacionadas à drogadição. Essa Lei Instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – Sisnad, que prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes químicos. Vale ressaltar que essa política tenta desestigmatizar o usuário sem negligenciar, evidentemente, o combate ao narcotráfico, ou seja, diminuir a oferta do produto ilícito.

É importante reconhecer, nesse contexto, que as universidades brasileiras, principalmente as localizadas nos centros Sul/Sudeste, têm desenvolvido uma vasta produção cientifica sobre o problema da drogadição. Há, também, uma rede de atenção de serviços profissionais, voluntários, religiosos, de recursos comunitários (grupos de mútua-ajuda), espalhada pelos mais distantes recantos do país. Podendo-se afirmar que, efetivamente, inserimos o problema da drogadição nas nossas preocupações cotidianas pelo viés da medicalização e intervenções terapêuticas.

O que está faltando, neste contexto, é uma mobilização social por parte dos mais interessados no problema da drogadição, que são os próprios usuários e seus familiares. Nem somente as clínicas, nem as comunidades terapêuticas, os hospitais, os grupos de mútua ajuda; nem os esforços dos profissionais, por mais adequados que sejam, darão conta da complexidade do problema do uso de drogas; problema que vem se estabelecendo, rapidamente, como uma subcultura valorizada principalmente pelos jovens.

Só a sociedade unida, com a participação de todos os segmentos, poderá debelar a cultura da drogadição que avança vorazmente sobre a nossa população. Para tanto, é preciso considerar o papel preponderante daqueles que são voz ativa nesse processo, ou seja, as pessoas que conseguiram resolver o seu problema de dependência química e alcançaram a recuperação, juntamente com os seus familiares.
Crisvalter Medeiros – jornalista da equipe do CRR-IFPB

quarta-feira, 11 de maio de 2011

O OXI E O CRACK

Dr° Drazio Varela


Enquanto insistirmos em concentrar os esforços na "guerra contra as drogas", sem nos preocuparmos em reduzir o número de usuários que formam o mercado consumidor, iremos ao sabor da droga da moda, cada vez mais barata, compulsiva e destruidora.Caro leitor, é preciso ter curso de pós-graduação em drogas ilícitas para prever o que acontecerá?

Agora, no auge da epidemia de crack, surge o oxi, preparação mais bruta ainda, resultado do tratamento da pasta de cocaína com querosene, cal e líquidos oxidantes, mais baratos do que o bicarbonato e o amoníaco usados na química do crack. Na cracolândia a pedra é vendida a R$ 2; a de crack custa R$ 10.

Nessa época, tive a esperança de que desaparecesse também das ruas, em analogia ao que acontecera com a cocaína injetável. Logo percebi a ingenuidade: é a droga que mais lucro dá ao traficante.

Quando uma das facções de prisioneiros assumiu a supremacia nas cadeias de São Paulo, seus líderes concluíram que o crack colocava o usuário num estado de insolvência financeira que prejudicava os interesses da organização. Como consequência, aconteceu o que eu jamais poderia imaginar, o crack foi banido das cadeias paulistas.

A ausência completa de campanhas de esclarecimento nas escolas e nos meios de comunicação de massa, de estratégias de prevenção ao uso e de programas de saúde destinados a recuperar os usuários, permitiram que o crack se espalhasse feito praga e chegasse às cidades pequenas do país inteiro.Não havia motivo para comemoração, no entanto. A cocaína injetável foi imediatamente substituída pelo crack, preparação mais impura, mais barata e de uso compulsivo, que eliminava a necessidade da aplicação intravenosa.

As mortes por Aids, a aparência física dos que chegavam ao estágio final de evolução e as campanhas educativas contra o uso de droga na veia acabaram com as injeções de cocaína no presídio, tendência que se espalharia pelas ruas da cidade.Os resultados mostraram que 17,3% dos presos eram HIV-positivos, quase todos infectados por seringas e agulhas. Estudo realizado mais tarde com as mesmas amostras revelou que 60% delas eram positivas para o vírus da hepatite C.

Nesse ano, colhemos 1.492 amostras de sangue entre os que estavam inscritos no programa de visitas íntimas, com o objetivo de mostrar às autoridades do sistema prisional que era um absurdo a sociedade abrir as portas da cadeia para mais de mil parceiras sexuais daqueles homens, sem lhes oferecer qualquer tipo de informação nem lhes garantir acesso ao preservativo.Quando cheguei ao Carandiru, em 1989, cansei de atender presos com as veias dos braços em petição de miséria, resultado das sucessivas picadas para injetar a droga nas condições mais precárias de assepsia que alguém possa imaginar.O acúmulo desses casos deixou claro que havia uma epidemia de cocaína injetável que se disseminava em silêncio na periferia das cidades grandes.Os primeiros casos da doença no Brasil foram diagnosticados a partir de 1982, exclusivamente entre homens homossexuais. Em seguida, começaram a surgir homens e mulheres heterossexuais dos bairros mais pobres, que haviam contraído o vírus ao compartilhar seringas e agulhas para injetar cocaína.

A epidemia de Aids se encarregou de escancarar uma realidade menos fantasiosa.Tradicionalmente mais cara do que a maconha, a cocaína foi considerada exclusiva dos mais abastados até o fim dos anos 1970. Na imaginação popular, o pó era consumido em reuniões, nos passeios de iate e nas festas em que os milionários faziam troca de casais.

Na esteira do movimento hippie e da contracultura, a maconha se tornaria a droga preferida pela juventude, a partir da década de 1960. Os primeiros a aderir foram os universitários e os intelectuais, depois vieram os mais jovens e os iletrados, num processo insidioso e persistente que disseminou o uso em todas as camadas sociais.Nos anos 1950, a classe média chamava a maconha de "droga de engraxate", com desprezo. Fumavam maconha apenas os marginais e a malandragem de rua; a burguesia endinheirada, jamais.DROGA ILÍCITA é como a moda: passa uma, vem outra.

Folha de São Paulo - DRAUZIO VARELLA

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A MÍDIA DEVE INFORMAR AOS USUÁRIOS DE DROGAS SOBRE AS FORMAS DE TRATAMENTO NA REDE DE ATENÇÃO À SAÚDE

Professora Teresa Cristina Endo em atividades no CRR-IFPB



A professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Teresa Cristina Endo, ministrou as disciplinas de política nacional sobre drogas, política nacional sobre o álcool e políticas setoriais de saúde, na primeira semana de aulas do Centro Regional de Referência para Formação Permanente de Profissionais da Rede de Atenção a Usuários de Crack e outras Drogas (CRR-IFPB), em João Pessoa, nos dias 28 e 29 de abril.

A professora, Cristina Endo, que está pesquisando os processos de exclusão no Sistema Único de Saúde, integra a equipe de saúde mental da Prefeitura Metropolitana de São Paulo. Em entrevista, ela analisou o atual surto de preocupação com o uso de crack no Brasil, enfocando aspectos relacionados à saúde dos usuários.

“O preconceito vira exclusão do paciente”, Teresa Cristina Endo

ENTREVISTA

Crisvalter: Professora, existe, atualmente, uma grande preocupação com os usuários de crack. Qual o motivo dessa preocupação?

Cristina Endo: O uso de crack acabou sendo veiculado pela mídia como alerta, acho que a mídia tem esse papel de alertar a população para o que acontece. Mas o fenômeno do crack já existia há, pelo menos, dez anos lá em São Paulo. O noticiário sobre o crack chamou a atenção do olhar das autoridades para esse fenômeno. A divulgação quase que constante do problema, também está sendo acompanhada de uma maior acessibilidade para essa substância. Quando se conversar com um usuário de crack, nas chamadas cracolândias, todos eles se referem à facilidade de conseguir acessar essa droga.

Entretanto, ao mesmo tempo que denuncia o horror causado pela facilidade do acesso a essa droga, também é importante que a mídia informe sobre as formas de tratamento na rede de atenção aos usuários. Na minha concepção, a mídia tem esse duplo sentido. Não houve um aumento vertiginoso do uso de drogas, mas a informação constante sobre as drogas faz com que a matéria passe a ser de interesse público. Portanto, a informação associada ao registro por parte da população faz com que o crack apareça no cenário como se fosse um problema que surge agora porque os olhos estão voltados massivamente para esse problema.

O que é preciso entender é que nem toda pessoa faz uso completamente prejudicial das drogas à sua vida; algumas pessoas fazem uso ocasional das drogas por um curto tempo de três a quatro dias, período em que elas ficam sobre o efeito e depois voltam para casa. Se essa pessoa vai ficar dependente não há como predeterminar, isso vai depender das peculiaridades de cada indivíduo.

Contraditoriamente, as cenas mostradas na televisão passam a idéia de que todas aquelas pessoas que freqüentam as cenas de uso de crack estão fazendo uso abusivo ou são dependentes, como se todos fossem iguais. Um detalhe é que acompanhado ao crack também se encontra, constantemente, o uso de álcool.

Crisvalter: Se tornar dependente do crack na fase experimental é um mito?

Cristina Endo: É sim, é um mito para o uso de todas as drogas. Para a pessoa se tornar dependente precisa de várias condições físicas, psicológicas e contextuais, principalmente em termos de família e das condições de vida que ela está passando. Às vezes, o uso de uma droga é um sustentáculo para ela não fazer algo pior, como cometer suicídio ou entrar em depressão.

O uso de álcool na vida de uma pessoa, às vezes, é algo estruturante. Parece esquisito para um profissional de saúde falar isso, mas é que nós sabemos que o psiquismo está sempre se defendendo de algo pior. Quando a pessoa se encontra dependente de uma substância é porque isso está defendendo-a de alguma outra coisa, de um sofrimento maior. Toda dependência carrega em si uma comorbidade psiquiátrica, ela tem subjacente a si um sofrimento psíquico. Quando se retira a droga aparece, no mínimo, uma depressão, ou um transtorno bipolar

Crisvalter: Você está dizendo que a droga não é o problema, ela seria um sintoma?

Cristina Endo: Exatamente, seria um sintoma.

Crisvalter: As cenas de uso de crack parecem ser inusitadas e sendo a droga um sintoma, quais os encaminhamentos mais adequados?

Cristina Endo: Com relação às cenas, é claro que a mídia pega um recorte da realidade. Eu já acompanhei várias entrevistas com usuários de drogas pela mídia e o que se veicula é o recorte do horror da situação do momento. Já tivemos vários pacientes que foram recuperados, que tiveram tratamento em clinicas e mesmo em CAPS álcool e drogas, mas o jornalista não se preocupa em levantar a trajetória desses pacientes do começo do problema até a fase do tratamento. O que interessa ao jornalista é o recorte daquele momento que muitas vezes é a situação na qual o usuário está trocando a roupa, ou as sandálias, por crack, o que se caracteriza como um estado alucinado do uso da droga. Mas se você pega esse indivíduo e faz o levantamento da historia dele, como ele chegou até a clínica, como estará no dia seguinte e como ele vai sair dali, então será outra história. Temos histórias de pessoas que conseguiram sair desse uso alucinado passando ao uso de outra droga menos nociva à saúde ou que conseguiram, através de substituições sucessivas, aderir a um tratamento.

Crisvalter: No caso do crack, qual a droga de substituição que poderia levar o usuário a abstinência?

Cristina Endo: O álcool sempre acompanha o uso de crack. Nesses casos, é possível alcançar o uso ocasional do crack. No sistema de saúde nós aconselhamos os medicamentos controlados pelos médicos. Para lidar com a fissura, que é a vontade intensa de usar a substância, quando o usuário fica numa ansiedade altíssima, é preciso ministrar um ansiolítico e aconselhar o paciente a se cuidar melhor. Essas substâncias também são drogas, mas elas são receitadas pelos médicos.

A retirada da droga deve ser gradual, em caso de dependência não se preconiza a abstinência zero, mas a retirada gradual com auxílio medicamentoso e apoio de uma terapia. O nosso objetivo não é a droga, mas o sujeito que está se relacionando com a droga.

Crisvalter: Você disse, anteriormente, que o uso de álcool, às vezes, é estruturante na vida de uma pessoa. Em que situação o crack seria estruturante na vida de um usuário ?

Cristina Endo: A questão não é a substância em si, a questão é que naquele momento da vida a pessoa necessita estar fazendo uso de alguma substância, mesmo que seja um uso alucinado ou dependente. Se nós formos julgar moralmente todas as pessoas que estão fazendo uso de drogas como pessoas perversas, com transtorno de conduta, como psicopatas ou desajustadas, estaremos fazendo um julgamento de valor, mesmo que seja na esfera da saúde. O fato é que naquele momento aquela pessoa precisa fazer uso de uma substância que esteja acessível e que vai ter um efeito prazeroso sobre ela, produzindo alguma satisfação, preenchendo algo que ela não tem, que pode ser uma “falha”, uma falta, ou uma angústia que não está sendo ocupada pelo que deveria ser. Por exemplo, não ter uma família, não ter uma relação amorosa, não ter um trabalho, não dispor de diversas coisas naquele momento. Então, com o que ela vai tamponar essa angústia? Com aquilo que está mais acessível e, às vezes, isso é a droga. Mas o que ela busca é o efeito produzido pela substância, é esse efeito que vai trazer uma sensação melhor para ela. O que o usuário busca não é a droga em si, mas o efeito?

Crisvalter: Qual a função do imaginário da droga, no contexto atual?

Cristina Endo: O problema não é o crack. O uso de qualquer substância é um sintoma de algo que está subjacente. O importante é aquilo que faz com que o usuário chegue a uma situação de dependência e isto não é apenas a droga em si. Eu não falo da droga, falo do usuário que foi ao encontro de uma substância que o levou à dependência. Quando analisamos esse encontro, entendemos que foram as múltiplas causas que o levaram àquela situação e é sobre isso que nós devermos estar atentos. Nenhum usuário de droga deve ser atendido por uma terapia única, o tratamento é complexo.

As pessoas podem se beneficiar de vários tipos de tratamento. O usuário vai se adaptar a um modelo ou a outro. Alguns vão responder melhor a modelos mais rígidos e fechados, outros preferem modelos em que se sintam num espaço de conversa ou de troca; outros vão se sentir melhor com uma meditação; há usuários que aceitam lugares fechados, outros têm fobia a esses ambientes. Mundialmente, os índices de recuperação são muito próximos para todos esses modelos de intervenção, a idéia não é verificar qual o melhor modelo, mas a técnica singular à qual o paciente responda melhor, que consiga apresentar resultados.

Crisvalter: Agindo assim, se consegue a cura da dependência?

Cristina Endo: A idéia é perceber os fatores que estão em jogo e que levaram a pessoa à dependência, o importante é fazer com que o indivíduo vá precisando menos fazer uso da substancia e consiga resgatar aquilo que se perdeu durante a vida dele. Então se a “falha” foi na questão amorosa, ele vai precisar menos da substância ao descobrir que está usando drogas porque não dá conta daquela angústia pela falta da relação amorosa. Se a terapia foi capaz de fortalecer a pessoa para o resgate da relação amorosa, então a questão não era a droga. Muitas intervenções focalizam o uso e a abstinência, mas não focam as questões subjacentes. É de extrema importância no processo terapêutico entender as comorbidades psiquiátricas. Nesses casos, quando se retira a droga aparece, no mínimo, uma pessoa deprimida que nunca se tratou e achou na substância uma saída para o problema, um alívio para o seu sofrimento.

Os dependentes, geralmente, são as pessoas que por não conseguirem ter acesso a um médico ou psicólogo nunca souberam que tinham um problema de saúde mental e conseguem algo mais acessível para aliviar o seu sofrimento. Nestes casos, é preciso uma intervenção de saúde mental para fazer com que a pessoa não precise mais usar a substância.

Crisvalter: O transtorno mental leva ao uso freqüente da droga ou a droga leva ao aparecimento do transtorno?

Cristina Endo: A pessoa teria um transtorno de base, mas nunca soube disso, só sentia o sofrimento, o sintoma, e usou a droga como automedicação.

Crisvalter: Diante dessa problemática, qual a importância dos Centros Regionais de Referência para Formação Permanente de Profissionais da Rede de Atenção a Usuários de Crack e outras Drogas criados, recentemente, pela SENAD ?

Cristina Endo: Esses Centros são da máxima importância porque vem trazer mais formação para todas as pessoas envolvidas no problema. Muitos de nós, profissionais de saúde, não nos localizamos como fazendo parte desses problemas. Se a pessoa não está diretamente numa assistência ao dependente, dificilmente ela vai se localizar como alguém que se insere nesse processo. Como esses Centros abrangem um maior número de pessoas, o problema vai ser colocado exatamente onde ele se aloja, que é na variabilidade, numa realidade multifacetada que leva as pessoas a usarem drogas. No município, por exemplo, todas as secretarias precisam estar envolvidas nos processos de atenção aos usuários de drogas, não apenas a da saúde. As universidades devem participar com a pesquisa para possamos conhecer melhor a realidade dos usuários e dos profissionais que trabalham com essas pessoas. Os profissionais que estão sendo capacitados nesses Centros vão ser multiplicadores para outros, formando um movimento de atuação conjunta no cotidiano das instituições. É preciso buscar um fazer diferente com um novo discurso, uma nova ação e uma nova prática. Se as políticas não forem ao encontro das necessidades dos profissionais que trabalham na ponta do sistema, não vão funcionar, estarão apenas no papel sem a potência de ser aplicada.

Crisvalter: Qual a maior dificuldade que envolve, atualmente, os profissionais da saúde e os pacientes da dependência química e que precisa ser superada.

Cristina Endo: O que me ocorre é o problema do preconceito justificado pela falta de formação. Sem formação os profissionais não se autorizam a lidar com essas pessoas. Os profissionais querem se sentir seguros com uma formação específica para esse campo, muitos não se sentem capacitados enquanto não tem um formação acadêmica consolidada, a exemplo de um doutorado na área. Tem também o preconceito ligado ao usuário de droga que não está apenas na comunidade leiga, mas também está nos profissionais justificado através de uma linguagem técnica ou política. O preconceito vira exclusão do paciente.

Por Crisvalter Medeiros

Cursos do CRR-IFPB começam com interação entre profissionais e professores

Dinâmica com alunos do PSF/NASF

As aulas dos cursos do Centro Regional de Referência para Formação Permanente de Profissionais da Rede de Atenção a Usuários de Crack e outras Drogas (CRR-IFPB) começaram, no último final de semana (28/29), no Hotel Netuanah, localizado na Praia do Cabo Branco, em João Pessoa, com a participação efetiva dos 350 candidatos inscritos.

A equipe interinstitucional de professores ficou satisfeita e motivada com a participação bastante dinâmica dos alunos que são médicos do PSF e NASF, profissionais das redes SUS e SUAS, além de outros agentes sociais.

Nos dois primeiros dias de aulas do CRR-IFPB, foram ministradas as disciplinas: Política nacional sobre drogas e Política nacional sobre álcool; Políticas setoriais de saúde; Rede de atenção (SUS, NASF, PSF, CAPS, HG); Políticas setoriais de assistência social (SUAS: Cras e Creas e o Sinase-Sistema de atenção socioeducativo).

A coordenadora do CRR-IFPB, professora Vania Medeiros, destacou a interação quase imediata entre os profissionais das redes SUS e SUAS e a equipe de professores constituída, em sua maioria, por acadêmicos e técnicos de reconhecida competência em âmbito nacional na área da atenção a usuários de drogas e dependentes químicos.

"Os primeiros momentos dos cursos já foram marcados por uma forte interação de experiências entre os atores locais das políticas sobre drogas e as lideranças nacionais nessa área; o que, certamente, possibilitará resultados concretos para o Estado da Paraíba, no contexto da melhoria dos serviços e na expansão de ações qualificadas” assinalou a professora.

Na avaliação do primeiro encontro, os professores ressaltaram a importância do interesse demonstrado pelos profissionais da rede local de atenção aos usuário de drogas por novas práticas que venham atender às demandas dentro das diretrizes da política de saúde e de assistência social. A professora Cristina Endo, da PUC-SP, ficou surpresa com o alto nível das discussões em sala de aula, “o que nos motiva a fazer um trabalho cada vez melhor”, enfatizou.
Crisvalter Medeiros

Veja mais fotos do início das aulas no CRR-IFPB