Fillipe Valentine: Diretor do CCAR - Connecticut
Fillipe Valentine é diretor executivo da Comunidade de Recuperação de Dependentes Químicos de Connecticut (CCAR), desde 1998. O CCAR vislumbra um mundo onde o poder e a esperança da recuperação da dependência de álcool e de outras drogas são valores reconhecidos e abraçados.
Mr. Valentine está em recuperação do alcoolismo e do uso de outras drogas desde 28 de dezembro de 1987. Frente ao CCAR, ele tem se preocupado com duas prioridades: dar um rosto e uma voz à recuperação e oferecer serviços de apoio às pessoas em recuperação. O método do CCAR não se concentra sobre a patologia do indivíduo, mas sobre o seu potencial de recuperação.
Mr. Valentine concedeu entrevista, através da internet, ao jornalista Crisvalter Medeiros, assessor do Centro Regional de Referência para Formação Permanente da Rede de Atenção aos Usuários de Crack e outras Drogas da Paraíba.
ENTREVISTA:
Crisvalter – Mr. Valentine, no Brasil nós conhecemos o conceito de recuperação de dependência química disseminado pelos Alcoólicos Anônimos (AA), que é um conceito de abstinência do uso de álcool e outras drogas. Advocacy da Recuperação tem o mesmo significado?
Phillip Valentine: Nos EUA, nós descobrimos que AA é uma das várias maneiras para se alcançar a recuperação. Nós gostamos de dizer que há múltiplos caminhos para a recuperação. Minha organização, CCAR-Comunidade para Recuperação de Usuários de Drogas de Connecticut, adotou o conceito de que "você está em recuperação, se você diz que está". A maioria das pessoas aqui diria que a abstinência é a melhor maneira, mas não necessariamente o único caminho. A minha recuperação começou em AA, nos 12 Passos e na abstinência.
Crisvalter – Qual é a diferença entre recuperação e tratamento para vocês?
Phillip Valentine: O tratamento inicia o processo de recuperação. Para algumas pessoas em recuperação à longo prazo, algo em torno de cinco anos sem apresentar sintomas do uso da substância, o tratamento foi a forma como elas começaram a recuperação. Mas é preciso reconhecer que a maioria das pessoas em recuperação à longo prazo nos EUA nunca teve um episódio de tratamento. A recuperação é uma mudança completa no estilo de vida da pessoa, na qual ela passa a ter uma relação saudável, em geral de abstinência, com o álcool ou outras drogas e esforça-se para alcançar uma melhor saúde global (física, emocional, espiritual), além de se tornar um cidadão contribuinte. A recuperação é muito, muito mais do que o tratamento.
Crisvalter – Qual é a visão de tratamento profissional para abuso e dependência de drogas nos Estados Unidos, atualmente ?
Phillip Valentine: Eu não acho que posso falar como profissional do tratamento da dependência, nem falar para esse segmento. No entanto, a comunidade de recuperação, junto à qual nós atuamos, está muito satisfeita com o trabalho que fazemos. O tratamento é fabuloso para iniciar a recuperação. Claro que gostaríamos que houvessem mais opções e mais disponibilidade de tratamento.
Crisvalter – O que é uma Comunidade de Recuperação?
Phillip Valentine: Uma comunidade de recuperação é um grupo formado por pessoas que se comprometem em compartilhar experiências com o objetivo de ajudar a outras pessoas. Elas querem dar esperança ao colocar um rosto e uma voz na recuperação, contando as suas histórias publicamente ou prestando serviços de apoio que podem ajudar a outros indivíduos a se manterem em recuperação, uma vez que o processo de recuperação foi iniciado. Elas também recebem algum apoio mútuo em retribuição.
Crisvalter - Quem são os membros de uma Comunidade de Recuperação?
Phillip Valentine: A maioria das Comunidades de Recuperação é formada por pessoas que estão em recuperação, as pessoas que abandonaram o álcool e outras drogas e agora estão trabalhando para melhorar suas vidas. Pessoas que se auto-identificam como fazendo parte daquela comunidade, mesmo que não tenham tido problema com drogas; esses são os familiares, amigos e aliados.
Crisvalter - Qual é o papel de um profissional da saúde em uma Comunidade de Recuperação?
Phillip Valentine: Nós entendemos que é um papel limitado, a menos que ele seja uma pessoa também em recuperação. A Comunidade de Recuperação cuida de si mesmo.
Crisvalter - Qual a relação entre Comunidade de Recuperação e Grupo de Ajuda-Mútua ?
Phillip Valentine: Muitos daqueles que estão em uma comunidade de recuperação são de grupos de ajuda mútua, a exemplo do AA, NA, CA etc. Contudo, a comunidade de recuperação inclui todos os membros de grupos de 12 passos, seja um usuário de álcool ou de qualquer droga, cocaína, maconha, crack e outras; temos também aquelas pessoas que estão em recuperação através da intervenção medicamentosa. Há pessoas que fundamentam sua recuperação em alguma crença, na fé religiosa, através da música, do esporte, do trabalho ou de uma atividade científica etc. A recuperação é uma construção bem mais ampla do que um grupo de mútua ajuda. A comunidade de recuperação é abrangente e acolhe a todos. É minha convicção que os grupos de ajuda mútua (como AA) não se opõem ao nosso trabalho e desejam o nosso sucesso.
Crisvalter: Quais são as ações de base para organizar uma comunidade de recuperação?
Phillip Valentine: Vou responder por etapas: 1. Encontrar pessoas, pode ser um pequeno grupo, que comunguem das mesmas opiniões, que compartilhem as mesmas paixões e ideias, que estejam dispostas a se tornarem visíveis mostrando a cara e a sua voz, com relação aos seus problemas de drogas. 2. Iniciar o trabalho com um ou dois projetos e tentar desenvolvê-los muito bem. Dar continuidade a esses projetos. 3. Quando esses projetos iniciais estiverem consolidados, você pode atrair mais pessoas para a causa e continuar a consolidação do projeto.
Crisvalter: Que tipos de serviços, ou ajuda, podem ser desenvolvidos em uma Comunidade de Recuperação?
Phillip Valentine: Temos um setor que trabalha essa área, que chamamos de Organização de Comunidades de Recuperação (RCO), que desenvolveu uma variedade de serviços: suporte à recuperação por telefone, ajudando às pessoas nas suas residências; apoio às pessoas para conseguirem trabalho, formação em recuperação através de uma variedade de workshops; apoio para formação de grupos de recuperação, apoio através da internet, apoiar eventos sociais livres de álcool e outras drogas, falar publicamente contando histórias de recuperação, e muito mais ...
Crisvalter - Que tipo de treinamento é necessário para preparar uma pessoa para atuar junto a uma Comunidade de Recuperação?
Phillip Valentine: Muito pouco. Normalmente o treinamento consiste em mostrar a causa que a organização defende. Às vezes, nós treinamos as pessoas sobre a forma de como falar em público para poderem contar a sua história de vida. Fora isso, cada pessoa traz o seu próprio talento e habilidade que são importantíssimos para a organização da comunidade de recuperação. Algumas habilidades são encaminhadas ao RCO para descobrir como serão melhor utilizadas.
Crisvalter: Como lidar com o problema do anonimato que existe nos grupos de mútua ajuda, a exemplo do AA, em uma Comunidade de Recuperação?
Phillip Valentine: Nós defendemos que participar da organização de uma Comunidade de Recuperação não é para todas as pessoas. No entanto, quando você decide dar um rosto e uma voz à recuperação, contando a sua história em público, oferecendo-se como a prova viva de que a recuperação é real, voce está se dispondo a fazer parte de um movimento de vanguarda, está se disposto a sair do esconderijo e fazer uma mudança positiva. As pessoas que agem desta forma contribuem para que a mensagem da recuperação possa ressoar junto a outras vozes. Depende de você querer fazer isto, de querer participar. Algumas pessoas vão sempre preferir permanecer anônimas, isto também é válido, nós respeitamos a vontade delas.
Crisvalter - Qual a relação entre as Comunidades de Recuperação e a proteção dos Direitos Humanos?
Phillip Valentine: De um modo geral, eu diria que todas as organizações comunitárias de recuperação acreditam que cada indivíduo tem o direito inerente de se recuperar. Nós, como advocates (ativistas) da recuperação, acreditamos que temos que remover barreiras e obstáculos para que a recuperação da dependência química seja cada vez mais uma realidade neste País (EUA). Isso pode ser um trabalho difícil e desafiador.
Crisvalter: Em uma sociedade onde existe um forte preconceito contra a dependência química, que ainda discrimina as pessoas em recuperação, qual o papel de Advocacy da Recuperação?
Phillip Valentine: É dar esperança para aqueles que ainda estão sofrendo com o problema. É colocar luz sobre as trevas.
Cirsvalter - Finalmente, como você se envolveu com Advocacy da Recuperação?
Phillip Valentine: Quando eu comecei a participar desse movimento, eu já tinha cerca de 12 anos na recuperação. Foi uma luta interna, comigo mesmo. Eu sempre acreditei (e ainda acredito) que o maior propósito que eu posso ter para a minha vida é estar disponível para falar sobre a minha recuperação. No início eu achava que em muitos aspectos o ativismo de advocacy da recuperação parecia um contra-senso relacionado aos programas baseados no anonimato, e isso me incomodava bastante. Ao longo dos anos, eu comecei a adquirir paz sobre o que eu faço e, principalmente, sobre quem eu sou. Eu já contei a minha história a milhares e milhares de pessoas e sinto que Deus tem me abençoado profundamente por me usar desta maneira. Mas a história ainda não terminou, ainda há muita coisa para acontecer...
Crisvalter - Mr. Valentine, foi um prazer entrevistá-lo, muito obrigado.
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