domingo, 5 de maio de 2013

Doutor Antônio Nery Filho desabafa e ameaça tirar o “time de campo”


Doutor Antônio Nery Filho é psiquiatra, professor da Universidade Federal da Bahia, e fundador do CETAD-Centro de Estudos e Terapia de Álcool e Drogas. Antônio Nery é uma das lideranças acadêmicas nacionais no campo da pesquisa em álcool e outras drogas. O trabalho do professora Nery ganhou repercussão internacional.
O professor está revoltado com o nome atribuído ao Estado da Fonte Nova, um patrimônio da cultura e do esporte baianos: Itaipava Arena Fone Nova. Segundo o professor, esse nome seria uma referência a uma marca de Cerveja. Acompanhe o desabafo do acadêmico em vídeo e leia matéria publica no blog dele.
                                                                                                                                                                                                     
                                                         


FOMOS ATINGIDOS EM NOSSA ALMA E EM NOSSA BAIANIDADE


Esperei o dia 12 de abril passado, uma sexta-feira, com a expectativa do soldado às vésperas da batalha. E por que? Porque iria dizer aos baianos, através da Rádio Metrópole (Jornal do Meio-Dia, 12 às 13 horas), o quanto havia de indignação, raiva, quase dor, em minha alma. E por quê? Porque durante uma semana recusei-me acreditar nas peças publicitárias espalhadas pelos quatro cantos da cidade dando conta do novo nome do Estádio Octávio Mangabeira – apelidado pelos baianos, de Fonte Nova. Li que nosso estádio havia se tornado uma arena, Itaipava Arena Fonte Nova, vinculando nossa praça de esportes a uma bebida alcoólica, uma das tantas marcas de cerveja.


E por que isto fez ferver o meu sangue? Porque a alma e o coração da gente de Salvador  têm várias fontes, uma delas é a Fonte Nova, descoberta pelos moradores do Tororó e Nazaré,  uma alternativa à outra velha fonte, contaminada pelas águas do Dique do Tororó.  Naquele lugar onde havia uma pedreira, e aonde mais tarde jovens estudantes iriam jogar futebol, segundo relato de Eduardo Gantois, ergueu-se e foi inaugurado em 28 de janeiro de 1951 o Estádio Octávio Mangabeira, homenagem ao então Governador da Bahia, com partida disputada e vencida por um a zero pelo Botafogo de Salvador contra o Guarany da Bahia. Contudo, a Fonte Nova estava lá, na memória esquecida, mas viva, da gente da Cidade da Bahia.   Concebido por Diógenes Rebouças, também responsável pela sua ampliação entre 1968 e 1971, a Fonte Nova ganhou anel superior e  sua capacidade passou para 60 mil pessoas. Foi num silêncio quase constrangedor que a Bahia viu sua implosão em agosto de 2010, motivada pelo desabamento de parte deste anel em novembro de 2007, e as exigências da FIFA para a Copa das Confederações em 2013 e a Copa do Mundo em 2014.
Dia após dia, durante três anos contados em painel gigante, vimos surgir e crescer o novo estádio, de formas curvas, feminino, exuberante. Para sua inauguração veio ter conosco a Presidente Dilma  Rousseff. Seu ato simbólico, segundo a imprensa, o pontapé original, foi dado com o pé esquerdo… Participaram do ato várias de nossas estrelas, dentre as quais Ivete Sangalo, representando a torcida do Esporte Clube Vitória,  e  Claudia Leitte , representando a Nação Tricolor. Para esta festa o estádio amanheceu abraçado por uma grande fita, lembrando a Fita do Senhor do Bonfim. Um grande laço ornava o lado sul, sob o qual, estarrecidos, lemos o nome do novo estádio: ITAIPAVAARENA FONTE NOVA.

Como suportar, depois de quase 30 anos cuidando de usuários de álcool e outras drogas, e seus familiares, que nosso estádio tenha seu nome vinculado ao produto mais danoso à saúde das populações? Como admitir que a droga responsável ou associada à maioria das mortes violentas seja associada ao esporte? Como conviver com as mortes no trânsito das cidades e estradas e os gritos das torcidas, vinculados às alegrias e tristezas das vitórias e derrotas ao longo dos campeonatos de futebol? Se por tudo isto lamentei na Rádio Metrópole, lamentei mais ainda a presença de nossos artistas no ato inaugural: não precisavam destes 30 dinheiros. Lamentei que nossos demais ídolos tenham ficado silentes. Não ouvi nossos radialistas, barulhentos, levantarem a mão ou a voz. Não conheci nome de político que tenha ido à praça pública manifestar seu repúdio ou proposto, da tribuna, qualquer moção, muitos deles inimigos públicos das drogas em nome de Jesus… Não conheci qualquer manifesto de advogados ou de sua ordem. Não sei quanto a dor desse novo nome alcançou a categoria médica. Não ouvi os psicólogos ou o Conselho Regional de Psicologia. Tampouco ouvi os antropólogos ou os sociólogos. Não li qualquer notícia sobre alguma ação dos Ministérios Públicos Estadual ou Federal. Não sei porque motivo silenciaram-se os professores de todos os níveis, os alunos, o clero que tantas vezes se insurgiu contra as iniquidades, a violência, defendeu a reforma agrária e a infância abandonada. Silenciaram-se engenheiros e arquitetos da Bahia; ficou em silêncio o Instituto Histórico e Geográfico, sempre defensor de nossas tradições. Onde estão as Secretarias de Turismo do Estado e do Município?

Lamentei que a mídia de minha terra tenha louvado a inauguração, e publicado foto de página inteira de um estádio embriagado…Sem comentários.

Aqui, plagio o poeta: “ baianos, baianas, onde estão que não respondem; em que mundo , em que estrela se escondem…”

No dia da inauguração, 7 de abril de 2013, cada pilar da Fonte Nova ostentava imenso painel onde se lia: 100% Futebol, associando, visualmente, cerveja e bolas. No que me diz respeito, permanecerei 100% contra qualquer argumento, em particular econômico, que tente justificar a imoralidade da submissão da nossa história, das tradições de nossa cidade, da história de nosso esporte a uma marca de cerveja. No dia da inauguração da Fonte Nova, sem saber o que fazer com o imenso mal estar que me invadiu, ouvi em uma rádio, Chico Buarque cantando (ou me provocando?):

Tem dias que a gente se sente
Como quem partiu ou morreu
A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu…
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá …
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
A gente vai contra a corrente
Até não poder resistir
Na volta do barco é que sente
O quanto deixou de cumprir
Faz tempo que a gente cultiva
A mais linda roseira que há
Mas eis que chega a roda viva
E carrega a roseira pra lá…
Roda mundo, roda gigante
Roda moinho, roda pião
O tempo rodou num instante
Nas voltas do meu coração…
Transcrito de 
http://conversandocomnery.wordpress.com/

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