A professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Teresa Cristina Endo, ministrou as disciplinas de política nacional sobre drogas, política nacional sobre o álcool e políticas setoriais de saúde, na primeira semana de aulas do Centro Regional de Referência para Formação Permanente de Profissionais da Rede de Atenção a Usuários de Crack e outras Drogas (CRR-IFPB), em João Pessoa, nos dias 28 e 29 de abril.
A professora, Cristina Endo, que está pesquisando os processos de exclusão no Sistema Único de Saúde, integra a equipe de saúde mental da Prefeitura Metropolitana de São Paulo. Em entrevista, ela analisou o atual surto de preocupação com o uso de crack no Brasil, enfocando aspectos relacionados à saúde dos usuários.
“O preconceito vira exclusão do paciente”, Teresa Cristina Endo
ENTREVISTA
Crisvalter: Professora, existe, atualmente, uma grande preocupação com os usuários de crack. Qual o motivo dessa preocupação?
Cristina Endo: O uso de crack acabou sendo veiculado pela mídia como alerta, acho que a mídia tem esse papel de alertar a população para o que acontece. Mas o fenômeno do crack já existia há, pelo menos, dez anos lá em São Paulo. O noticiário sobre o crack chamou a atenção do olhar das autoridades para esse fenômeno. A divulgação quase que constante do problema, também está sendo acompanhada de uma maior acessibilidade para essa substância. Quando se conversar com um usuário de crack, nas chamadas cracolândias, todos eles se referem à facilidade de conseguir acessar essa droga.
Entretanto, ao mesmo tempo que denuncia o horror causado pela facilidade do acesso a essa droga, também é importante que a mídia informe sobre as formas de tratamento na rede de atenção aos usuários. Na minha concepção, a mídia tem esse duplo sentido. Não houve um aumento vertiginoso do uso de drogas, mas a informação constante sobre as drogas faz com que a matéria passe a ser de interesse público. Portanto, a informação associada ao registro por parte da população faz com que o crack apareça no cenário como se fosse um problema que surge agora porque os olhos estão voltados massivamente para esse problema.
O que é preciso entender é que nem toda pessoa faz uso completamente prejudicial das drogas à sua vida; algumas pessoas fazem uso ocasional das drogas por um curto tempo de três a quatro dias, período em que elas ficam sobre o efeito e depois voltam para casa. Se essa pessoa vai ficar dependente não há como predeterminar, isso vai depender das peculiaridades de cada indivíduo.
Contraditoriamente, as cenas mostradas na televisão passam a idéia de que todas aquelas pessoas que freqüentam as cenas de uso de crack estão fazendo uso abusivo ou são dependentes, como se todos fossem iguais. Um detalhe é que acompanhado ao crack também se encontra, constantemente, o uso de álcool.
Crisvalter: Se tornar dependente do crack na fase experimental é um mito?
Cristina Endo: É sim, é um mito para o uso de todas as drogas. Para a pessoa se tornar dependente precisa de várias condições físicas, psicológicas e contextuais, principalmente em termos de família e das condições de vida que ela está passando. Às vezes, o uso de uma droga é um sustentáculo para ela não fazer algo pior, como cometer suicídio ou entrar em depressão.
O uso de álcool na vida de uma pessoa, às vezes, é algo estruturante. Parece esquisito para um profissional de saúde falar isso, mas é que nós sabemos que o psiquismo está sempre se defendendo de algo pior. Quando a pessoa se encontra dependente de uma substância é porque isso está defendendo-a de alguma outra coisa, de um sofrimento maior. Toda dependência carrega em si uma comorbidade psiquiátrica, ela tem subjacente a si um sofrimento psíquico. Quando se retira a droga aparece, no mínimo, uma depressão, ou um transtorno bipolar
Crisvalter: Você está dizendo que a droga não é o problema, ela seria um sintoma?
Cristina Endo: Exatamente, seria um sintoma.
Crisvalter: As cenas de uso de crack parecem ser inusitadas e sendo a droga um sintoma, quais os encaminhamentos mais adequados?
Cristina Endo: Com relação às cenas, é claro que a mídia pega um recorte da realidade. Eu já acompanhei várias entrevistas com usuários de drogas pela mídia e o que se veicula é o recorte do horror da situação do momento. Já tivemos vários pacientes que foram recuperados, que tiveram tratamento em clinicas e mesmo em CAPS álcool e drogas, mas o jornalista não se preocupa em levantar a trajetória desses pacientes do começo do problema até a fase do tratamento. O que interessa ao jornalista é o recorte daquele momento que muitas vezes é a situação na qual o usuário está trocando a roupa, ou as sandálias, por crack, o que se caracteriza como um estado alucinado do uso da droga. Mas se você pega esse indivíduo e faz o levantamento da historia dele, como ele chegou até a clínica, como estará no dia seguinte e como ele vai sair dali, então será outra história. Temos histórias de pessoas que conseguiram sair desse uso alucinado passando ao uso de outra droga menos nociva à saúde ou que conseguiram, através de substituições sucessivas, aderir a um tratamento.
Crisvalter: No caso do crack, qual a droga de substituição que poderia levar o usuário a abstinência?
Cristina Endo: O álcool sempre acompanha o uso de crack. Nesses casos, é possível alcançar o uso ocasional do crack. No sistema de saúde nós aconselhamos os medicamentos controlados pelos médicos. Para lidar com a fissura, que é a vontade intensa de usar a substância, quando o usuário fica numa ansiedade altíssima, é preciso ministrar um ansiolítico e aconselhar o paciente a se cuidar melhor. Essas substâncias também são drogas, mas elas são receitadas pelos médicos.
A retirada da droga deve ser gradual, em caso de dependência não se preconiza a abstinência zero, mas a retirada gradual com auxílio medicamentoso e apoio de uma terapia. O nosso objetivo não é a droga, mas o sujeito que está se relacionando com a droga.
Crisvalter: Você disse, anteriormente, que o uso de álcool, às vezes, é estruturante na vida de uma pessoa. Em que situação o crack seria estruturante na vida de um usuário ?
Cristina Endo: A questão não é a substância em si, a questão é que naquele momento da vida a pessoa necessita estar fazendo uso de alguma substância, mesmo que seja um uso alucinado ou dependente. Se nós formos julgar moralmente todas as pessoas que estão fazendo uso de drogas como pessoas perversas, com transtorno de conduta, como psicopatas ou desajustadas, estaremos fazendo um julgamento de valor, mesmo que seja na esfera da saúde. O fato é que naquele momento aquela pessoa precisa fazer uso de uma substância que esteja acessível e que vai ter um efeito prazeroso sobre ela, produzindo alguma satisfação, preenchendo algo que ela não tem, que pode ser uma “falha”, uma falta, ou uma angústia que não está sendo ocupada pelo que deveria ser. Por exemplo, não ter uma família, não ter uma relação amorosa, não ter um trabalho, não dispor de diversas coisas naquele momento. Então, com o que ela vai tamponar essa angústia? Com aquilo que está mais acessível e, às vezes, isso é a droga. Mas o que ela busca é o efeito produzido pela substância, é esse efeito que vai trazer uma sensação melhor para ela. O que o usuário busca não é a droga em si, mas o efeito?
Crisvalter: Qual a função do imaginário da droga, no contexto atual?
Cristina Endo: O problema não é o crack. O uso de qualquer substância é um sintoma de algo que está subjacente. O importante é aquilo que faz com que o usuário chegue a uma situação de dependência e isto não é apenas a droga em si. Eu não falo da droga, falo do usuário que foi ao encontro de uma substância que o levou à dependência. Quando analisamos esse encontro, entendemos que foram as múltiplas causas que o levaram àquela situação e é sobre isso que nós devermos estar atentos. Nenhum usuário de droga deve ser atendido por uma terapia única, o tratamento é complexo.
As pessoas podem se beneficiar de vários tipos de tratamento. O usuário vai se adaptar a um modelo ou a outro. Alguns vão responder melhor a modelos mais rígidos e fechados, outros preferem modelos em que se sintam num espaço de conversa ou de troca; outros vão se sentir melhor com uma meditação; há usuários que aceitam lugares fechados, outros têm fobia a esses ambientes. Mundialmente, os índices de recuperação são muito próximos para todos esses modelos de intervenção, a idéia não é verificar qual o melhor modelo, mas a técnica singular à qual o paciente responda melhor, que consiga apresentar resultados.
Crisvalter: Agindo assim, se consegue a cura da dependência?
Cristina Endo: A idéia é perceber os fatores que estão em jogo e que levaram a pessoa à dependência, o importante é fazer com que o indivíduo vá precisando menos fazer uso da substancia e consiga resgatar aquilo que se perdeu durante a vida dele. Então se a “falha” foi na questão amorosa, ele vai precisar menos da substância ao descobrir que está usando drogas porque não dá conta daquela angústia pela falta da relação amorosa. Se a terapia foi capaz de fortalecer a pessoa para o resgate da relação amorosa, então a questão não era a droga. Muitas intervenções focalizam o uso e a abstinência, mas não focam as questões subjacentes. É de extrema importância no processo terapêutico entender as comorbidades psiquiátricas. Nesses casos, quando se retira a droga aparece, no mínimo, uma pessoa deprimida que nunca se tratou e achou na substância uma saída para o problema, um alívio para o seu sofrimento.
Os dependentes, geralmente, são as pessoas que por não conseguirem ter acesso a um médico ou psicólogo nunca souberam que tinham um problema de saúde mental e conseguem algo mais acessível para aliviar o seu sofrimento. Nestes casos, é preciso uma intervenção de saúde mental para fazer com que a pessoa não precise mais usar a substância.
Crisvalter: O transtorno mental leva ao uso freqüente da droga ou a droga leva ao aparecimento do transtorno?
Cristina Endo: A pessoa teria um transtorno de base, mas nunca soube disso, só sentia o sofrimento, o sintoma, e usou a droga como automedicação.
Crisvalter: Diante dessa problemática, qual a importância dos Centros Regionais de Referência para Formação Permanente de Profissionais da Rede de Atenção a Usuários de Crack e outras Drogas criados, recentemente, pela SENAD ?
Cristina Endo: Esses Centros são da máxima importância porque vem trazer mais formação para todas as pessoas envolvidas no problema. Muitos de nós, profissionais de saúde, não nos localizamos como fazendo parte desses problemas. Se a pessoa não está diretamente numa assistência ao dependente, dificilmente ela vai se localizar como alguém que se insere nesse processo. Como esses Centros abrangem um maior número de pessoas, o problema vai ser colocado exatamente onde ele se aloja, que é na variabilidade, numa realidade multifacetada que leva as pessoas a usarem drogas. No município, por exemplo, todas as secretarias precisam estar envolvidas nos processos de atenção aos usuários de drogas, não apenas a da saúde. As universidades devem participar com a pesquisa para possamos conhecer melhor a realidade dos usuários e dos profissionais que trabalham com essas pessoas. Os profissionais que estão sendo capacitados nesses Centros vão ser multiplicadores para outros, formando um movimento de atuação conjunta no cotidiano das instituições. É preciso buscar um fazer diferente com um novo discurso, uma nova ação e uma nova prática. Se as políticas não forem ao encontro das necessidades dos profissionais que trabalham na ponta do sistema, não vão funcionar, estarão apenas no papel sem a potência de ser aplicada.
Crisvalter: Qual a maior dificuldade que envolve, atualmente, os profissionais da saúde e os pacientes da dependência química e que precisa ser superada.
Cristina Endo: O que me ocorre é o problema do preconceito justificado pela falta de formação. Sem formação os profissionais não se autorizam a lidar com essas pessoas. Os profissionais querem se sentir seguros com uma formação específica para esse campo, muitos não se sentem capacitados enquanto não tem um formação acadêmica consolidada, a exemplo de um doutorado na área. Tem também o preconceito ligado ao usuário de droga que não está apenas na comunidade leiga, mas também está nos profissionais justificado através de uma linguagem técnica ou política. O preconceito vira exclusão do paciente.
Por Crisvalter Medeiros
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