segunda-feira, 26 de março de 2012

MARISTELA MONTEIRO, ASSESSORA DA ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DE SAÚDE (OPAS), VINCULA O PROBLEMA DAS DROGAS, NO BRASIL, AOS PROCESSSOS DE EXCLUSÃO SOCIAL

Entrevista na Funarte, em São Paulo, durante o evento: Respostas Comunitárias.

A assessora da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), para os problemas do álcool e outras drogas para a América Latina, Drª. Maristela Monteiro, participou ativamente, até os últimos momentos, do evento: Respostas Comunitárias, que aconteceu recentemente, na FUNARTE, em São Paulo-SP. A OPAS é uma entidade ligada à Organização Mundial de Saúde-OMS.

O evento, promovido pelo Instituto Empodera e a Associação Lua Nova, de São Paulo, sob a gestão da advogada Marta Volpi e a psicóloga Raquel Barros, respectivamente, teve o objetivo de dar visibilidade às ações de empreendedorismo social realizadas em todo o País, como solução para os problemas das drogas, violência, abuso sexual e pobreza, além de todas as formas de discriminação social.

No intervalo entre as diversas atividades que desempenhou no evento, a Doutora Maristela Monteiro fez a gentileza de conceder essa entrevista ao jornalista paraibano, Crisvalter Medeiros, assessor do Centro Regional de Referência, da SENAD-Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, no Estado da Paraíba.

Crisvalter Medeiros: Drª. Maristela Monteiro, o Brasil, atualmente, está saindo de uma fase de visão repressiva às drogas, para uma fase de intervenções fundamentadas na saúde pública. No entanto, o modelo de tratamento que está sendo proposto ainda prioriza os ambientes fechados, a exemplo de hospitais, clínicas, enfermarias e, principalmente, comunidades terapêuticas. Fala-se, inclusive, em adoção de medidas que implantem o tratamento compulsório. Como você analisa essa questão?

Maristela Monteiro: Não vejo aqui, neste evento, nenhuma indicação de tratamento em comunidades terapêuticas de forma compulsória; o que estamos discutindo é o modelo de tratamento comunitário. O tratamento compulsório viola a convenção de direitos humanos dos descapacitados (ou incapacitados), que é a mais nova convenção das Nações Unidas. Essa é uma convenção vinculante, ou seja, os países que a ratificaram aceitaram os princípios nela contidos. A convenção engloba todos os problemas das incapacidades, inclusive aqueles relacionados à saúde mental, sem deixar de fora os dependentes químicos.

Vale salientar que o tratamento compulsório é condenado por essa convenção, mesmo para os casos nos quais a pessoa seja considerada privada do senso de autonomia. Nestes casos, deverá haver, pelo menos, um processo judicial. Quando a pessoa for considerada totalmente incompetente deve haver uma intervenção profissional para que se saiba que tipo de tratamento deverá ser oferecido, por quanto tempo, quem vai avaliar e quais os resultados obtidos, no sentido de garantir que esse processo não viole outros direitos humanos.

Crisvalter Medeiros: Você acha que o usuário de crack, que está numa situação de fissura pela droga, tem condição de receber uma abordagem para fazer um tratamento?

Maristela Monteiro: Veja bem, o que nós conhecemos hoje para o tratamento da dependência, para qualquer tipo de droga, é que você não convence alguém a fazer um tratamento; mas existe um momento na vida desse indivíduo em que ele se motiva para a mudança. O profissional deve captar esse momento adequado e ter a habilidade de fazer com que ele entre no tratamento. Mas se ele não tiver nenhuma motivação, nenhuma razão para mudar os seus hábitos, esse tratamento nunca dará resultado. Nós já sabemos disso há tempos, e não é porque a droga é o crack, heroína, álcool ou tabaco, ou mesmo substâncias medicamentosas, que essa situação vai ser diferente. Existe o efeito agudo do crack. Obviamente, uma pessoa que está intoxicada, com qualquer dessas substâncias, pessoas que não estão na condição de fazer julgamentos, não tem capacidade de escuta naquele momento, o que não significa que imediatamente depois, quando passar o efeito da intoxicação aguda, ela não possa ouvir e expressar suas necessidades para que se possa saber quais as prioridades para ela.

Atualmente, nós admitimos que o tratamento de base metodológica comunitária, além de outros na área de redução de danos, ou de acolhida, são projetos que visam iniciar um contato com o usuário, buscando alcançar um nível de confiança que não seja persecutório, nem para denunciá-lo, nem para excluí-lo ainda mais dos processos sociais. Isto pode levar algum tempo e durante esse tempo ele poderá continuar usando a droga, sem que essa situação leve a cessar o contato. No momento em que esse contato se estabiliza, isto significa que esse indivíduo está escutando melhor e aceitando as opções. A partir daí, vai se configurando a autonomia para decidir que opções adotar para essa pessoa. Dentre o leque de opções, pode ser apresentada a necessidade de um banho, de alimentos, de abrigo, de sair de uma situação de violência, que pode ser na rua ou doméstica. Tomemos como exemplo o caso das profissionais do sexo que sempre estão muito expostas às situações de alta vulnerabilidade para a violência, bem mais do que o próprio uso de drogas.

Crisvalter Medeiros: Então, Maristela, esse evento traz uma nova visão que é o tratamento comunitário. Entretanto, no Brasil, ainda há muito preconceito com a questão da droga, associando o uso de drogas à violência e a outros aspectos da marginalidade. Como você analisa a proposta de implantação do tratamento comunitário diante dessa visão conservadora, autoritária, preconceituosa e repressiva?

Maristela Monteiro: Concordo com o que você disse. É muito importante trabalhar com a população para esclarecer esses preconceitos. A mídia usa esses elementos para vender jornal, revistas e espaço na televisão. A mídia apresenta uma visão emergencial e alarmista do problema e não baseada em fatos científicos. Nos países onde se analisou a questão da violência relacionada às drogas, constatou-se que a maior parte dessa violência não vinha do consumo de substâncias por si, mas do tráfico de drogas e pela maneira como ele é combatido. É importante diferenciar de onde vem a violência, é da pessoa que usa e comete um ato violento, ou é a pessoa que vende e que está envolvida no trafico e que usa a violência para o tráfico, que pode ou não também ser usuário? A polícia sempre responde com muita violência ao enfrentamento ao tráfico. A saída é resolver o problema da violência sem promover mais violência, adotar técnicas de resolução de conflitos que não seja a partir de mais violência. Acho que essa é uma área importante para se trabalhar e complementar as ações de saúde pública.

Crisvalter Medeiros: No Brasil, os problemas relacionados às drogas ilícitas tem mais visibilidade do que as questões relacionadas ao álcool. Mesmo sendo proibido a vende de bebidas alcoólicas em estádios, em sete Estados Brasileiros, o acordo com a FIFA para a Copa de 2014 prevê a liberação da venda de álcool, nesses locais, onde ocorrerão os jogos. Como você analisa está situação?

Maristela Monteiro: O problema do álcool no Brasil é várias vezes maior do que o das drogas ilícitas, a repercussão dos problemas de todas as drogas juntas não superam os custos que o uso de álcool causa à sociedade brasileira. O álcool exige políticas que devem ser muito semelhante às políticas de controle do tabaco. O Brasil adotou uma posição inovadora e de ponta quando assinou o convênio do controle do tabaco, quando se encontrava na posição de maior exportador de folhas de tabaco do mundo; mesmo assim, se comprometeu e conseguiu encontrar consenso para aderir ao controle do tabaco em nível mundial. Para o álcool, as forças são muito semelhantes, há uma indústria do álcool que cada vez se fortalece mais, que pode, inclusive, corromper governos, que tem muito dinheiro, colocando os governos em situação ambivalente entre o controle e o acesso a esse produto. Não devemos proibir, mas controlar através da regulação de preços, da propaganda, dos locais de vendas.

Existem medidas que são muito efetivas, mas que não estão sendo utilizadas no Brasil. As leis estão sendo feitas com muitas falhas, a exemplo da tolerância zero, que foi muito boa para o País, mas que, sem as outras medidas de complementação legislativas, tornou-se ineficaz. Se as pessoas que dirigem embriagadas decidem não fazer o teste do bafômetro, não se pode condená-las, não existe um processo judicial rápido. Também existe muita impunidade para os crimes cometidos no trânsito por motoristas embriagados, a presença da polícia de forma ostensiva ainda é muito baixa. Desta forma, a população logo se dá conta de que pode beber e dirigir sem grandes conseqüências. É bom lembrar que apenas as campanhas educativas para conter o uso de álcool não funcionam. Portanto, o Brasil teve ganhos imediatos com a lei da tolerância zero para o uso de álcool no trânsito, mas já sabemos que houve prejuízos em muitas outras partes.

Crisvalter Medeiros: Doutora Maristela, apesar de todos esses problemas sem resolução que você elencou sobre o uso de drogas lícitas e ilícitas, no Brasil, ainda temos de conviver com uma certa pressão para a legalização do uso da maconha, mesmo que seja para fins medicinais. Como você analisa essa questão?

Maristela Monteiro: Eu acho que seria muito difícil para o Brasil, não pelos efeitos que são pensados para a saúde, mas pela falta de uma estrutura regulatória suficiente para isto. Por exemplo, permitir o uso do cigarro de maconha pensando nos efeitos fitoterápicos teria uma relação imediata com os efeitos da indústria do tabaco.  Neste caso, o próximo passo seria uma forte publicidade para o uso do cigarro de maconha, podendo ter outros efeitos na população que não os esperados para a saúde; também seria muito difícil fazer uma legislação específica para este caso, como foi difícil para conter o uso do tabaco.

O uso da maconha nos Estados Unidos foi possível porque se desenvolveu uma indústria em torno da prescrição para o uso terapêutico, mesmo assim, sabe-se que muitos dos usuários não teriam uma necessidade terapêutica; então torna-se uma maneira de efetivamente legalizar o uso da maconha. No Brasil não existe os profissionais capacitados para a prescrição do uso terapêutico da maconha, e fazer a legislação para esse tipo de uso seria um grande desafio para o qual eu acho que o sistema de saúde do País ainda não está preparado. É diferente de se despenalizar o uso, neste caso, se poderia mudar  varias legislações, mesmo assim, também seria uma questão muito difícil, tendo que ser feita com uma legislação construída passo a passo. Poderia se tentar o plantio para uso pessoal, como diversos países estão tentando fazer, mas é preciso saber quais os benefícios que essa medida traria e porque se estaria fazendo isto. Portanto, no momento, eu acho que o problema da maconha no Brasil não é de uma dimensão que uma medida desta natureza pudesse minimizar algum problema.  Se o uso da maconha é relativamente sem problemas, as pessoas não devem ser prejudicadas por isso e não devem ir para a prisão pela posse ou consumo da maconha, já que a repressão não resolve o problema do uso. Mas eu quero deixar claro que essas medidas não diminuiriam o uso da maconha nem a dependência, a tendência seria aumentar cada vez mais. É preciso ter um sistema de saúde preparado para a prevenção e o tratamento para se poder relaxar o uso da maconha.

Crisvalter Medeiros: Como você analisa a pesquisa e a extensão sobre drogas nas universidades brasileiras?

Maristela Monteiro: A criação dos Centros Regionais de Referência, pela SENAD, em parceria com os órgãos de extensão das Universidades, a princípio é muito interessante. No entanto, a Universidade precisa se articular mais com os profissionais que trabalham no sistema único de saúde, nos CAPS, para que, de uma maneira rápida, possa capacitá-los para atender imediatamente a toda a demanda de usuários da população vulnerável. Nesta área falta muito ainda a fazer. O sistema universitário brasileiro é enorme, tem alguns centros que são reconhecidos internacionalmente, mas ainda são muito poucos. Não consigo avaliar essa questão, principalmente, no que diz respeitos aos Centros de Referência, já que foram lançados recentemente.

Eu acho que é importante vincular e pensar a questão do crack e das demais drogas ilícitas como reflexo e produto da exclusão social, acima de qualquer outra perspectiva, porque é o que temos verificado. As populações que são mais vulneráveis às drogas são aquelas que nunca tiveram acesso aos serviços de saúde, de educação, a uma maneira digna de emprego e produção de renda. O País está se desenvolvendo, mais ainda são poucos os que se beneficiam deste desenvolvimento, essas populações excluídas do processo tornam-se as mais vulneráveis ao uso de crack e é urgente entender que essas populações estão crescendo. 

Contraditoriamente ao surto de desenvolvimento, a exclusão social no Brasil está aumentando, de acordo com as experiências que foram mostradas neste evento, de forma que a associação com o uso de drogas vem dessa exclusão. Este é um problema que vai aumentar cada vez mais; portanto, temos que repensar o modelo social e econômico vigente no País, que começou bem e retirou muita gente da miséria total, mas que continua gerando uma das sociedade mais desiguais do mundo.  Este é o grande desafio que tem de ser priorizado, senão cada vez mais esses sinais da exclusão vão  aparecer e  prejudicar todo o processo de desenvolvimento da malha social. Esta questão também está vinculada ao problema da corrupção nos governos, o que tem prejudicado muito a estabilização da democracia no Brasil.

Nenhum comentário:

Postar um comentário