segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Manoel Bertolote: “Sabemos que as políticas proibicionistas nunca funcionaram em lugar nenhum e não vão funcionar aqui também”


O pesquisador Manoel Bertolote participou do XXI Congresso da ABEAD como conferencista


O pesquisador José Manoel Bertolote, professor colaborador do Departamento de Neurologia, Psicologia e Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Botucatu (Unesp – Universidade Estadual Paulista), em entrevista a Crisvalter Medeiros, fez esclarecimentos sobre questões polêmicas envolvendo o debate contemporâneo sobre as políticas de drogas no Brasil e no mundo.

P. Professor Manoel Bertolote, existe uma comissão no Congresso Nacional elaborando a reformulação da lei 11.343. Qual o problema com essa lei e o que precisa ser realmente reformulado?

R. O Brasil tem um sistema direto e outro indireto de políticas nacionais para álcool e drogas. As políticas diretas são as escritas e as indiretas são aquelas que determinam o que se faz e o que não se faz.  Eu entendo que o movimento do Congresso Nacional é soberano mas, em parte, eu penso que esse movimento decorre de uma fonte de conhecimento mais aprofundada sobre aquilo que já existe em funcionamento e do que está escrito. Todo debate é bem vindo e é possível que desse que está em curso surja novos esclarecimentos, novas ideais e novas vertentes de trabalho.

P. Então o senhor acha que o debate é bem vindo?

R. O debate é sempre muito bem vindo. Eu só penso que ele não deveria começar do zero, mas iniciar a partir daquilo que já existe, do conhecimento que já se tem, o que nem sempre é o caso. Existem duas fontes de conhecimentos, o público que está na imprensa, na mídia; e o conhecimento técnico científico constituído pelos estudos especializadas. Os estudos científicos normalmente são escritos e apresentados em estilo um pouco pesado, o que não os tornam muito atraentes ou palatáveis para a mídia. Na verdade, a mídia gosta muito de números, de concisão e de coisas imediatas; portanto, muitas vezes ela extrai desta literatura técnica apenas os números que criam mais comoção e entusiasmo. A partir dai se organiza uma discussão que é apenas uma parte do conhecimento técnico científico. Isto gera uma discussão distorcida e perigosa podendo resultar em conclusões inadequadas.

P. Então o senhor sugere que haja uma melhor comunicação de massa sobre o tema das drogas baseadas em evidências cientificas ?

R. Eu penso que os formadores de opinião, principalmente jornalistas e políticos, deveriam conhecer melhor esse conhecimento técnico cientifico. Dou um exemplo: Não existe até hoje nenhum estudo sobre prevalência do uso de crack no País, mas todos os dias nós lemos declarações de alguém informando que há tantos usuários. Esses números, na verdade, são chutes, na há um conhecimento científico de base epidemiológica sobre os usuários de crack no Brasil.

P. Não há a confirmação científica de uma epidemia de uso de crack no Brasil ?

R. Eu digo duas coisas: Primeiro, o conceito de epidemia diz respeito a um aumento de uma determinada dimensão durante um determinado período de tempo, então para se dizer que existe uma epidemia de qualquer coisa nós temos, no mínimo, que ter duas medidas elaboradas no tempo com intervalos de um, dois ou três anos. Não temos isto em relação ao crack, não temos uma nem duas medida sequer. Repito, falar que há uma epidemia de uso de crack no Brasil é um chute, sem bases cientificas.

P. Gostaria que o Senhor explorasse um pouco os problemas que temos na área de tratamento de drogas no Brasil. Quais são os problemas nessa área que precisam ser reformulados?

R. O tratamento de álcool e outras drogas pode ser bastante eficaz na rede de atenção básica, mais que eficaz, esse tratamento tem uma ótima relação custo benefício; mais que isto, ele é mais eficaz e tem melhor relação custo benefício do que uma série de outras medidas preventivas gerais que se faz na rede básica, como prevenção de câncer e outros tipos de casos. Entretanto, isto não se faz, e não se faz aqui por dois motivos: primeiro porque não se conhece a realidade cientifica de que isto é eficaz e tem uma boa relação custo benefício e, segundo, não há vontade política de transformar isto em uma ação concreta porque gestores e detentores do poder que determinam direcionamentos para os serviços não conhecem essas informações.

Em relação ao álcool, já existe o conhecimento de que é perfeitamente possível tratar a maioria dos pacientes com problemas de bebidas na rede básica. Está é uma realidade estabelecida no mundo todo e referendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS); já a situação do crack é mais difícil, porque é uma substância relativamente nova e os profissionais que estão trabalhando na rede pública e privada não foram expostos a esses conhecimentos nos seus cursos de graduação. Portanto, temos que separar essas duas coisas: aquilo que não se faz por desconhecimento da prática real ou pouco conhecimento, outra que não se faz por inércia, uma certa preguiça, um certo relaxamento.

P. Qual o modelo que seria mais importante aprimorar neste momento, os modelos de tratamento fechados ou os abertos, incluindo comunidades terapêuticas etc?

R. O mais interessante é o sistema que integra tudo isto, o leito especializado do hospital psiquiátrico ou geral, a comunidade terapêutica, a rede básica, os Caps; todos são peças de um sistema de atendimento e não podemos prescindir de nenhum. O espectro do problema de álcool cobre desde problemas bastante simples que podem e devem ser resolvidos na rede básica, até casos extremamente complicados não só pela gravidade da doença, mas também pela comorbidade que é a associação com outros transtornos. Não podemos imaginar que a rede básica vai dar conta de tudo, assim como não podemos imaginar também que haverá leitos psiquiátricos para todos. Nós precisamos de um sistema que integre a rede básica, como a base do sistema. A rede básica deveria ser porta de entrada onde deveria começar a triagem, a avaliação dos pacientes, o tratamento daqueles cuja complexidade clínica permite que sejam tratados neste âmbito e depois os níveis secundários, terciários e de medicina especializada. Além disso, deveríamos ter níveis similares nas áreas sociais que incluíssem os abrigos, as casas de acolhimento transitórias e as comunidades terapêuticas.

P. O senhor defende também uma integração destes setores e como fazer isso?

R. Absoluta, absoluta. Pode-se fazer isso sentando e conversando. No caso específico do usuário de crack, em particular, é impossível o setor da saúde de forma isolada dar conta do problema. A quantidade de problemas sociais dos usuários de crack é de tal dimensão que o setor da saúde não tem como entender isso. Por outro lado, a complexidade da dependência biológica do crack e o ciclo biológico é tal, que só o sistema de assistência social também não vai dar conta disso. Então, ou se faz a integração dos dois sistemas ou vamos ficar patinando e não vamos ter uma resposta adequada.

P. Gostaria de ouvir a sua posição sobre a prevenção. Sabe-se que é importante ter políticas de Prevenção neste contexto, mas elas não estão amadurecidas o suficiente em nosso país. O que o senhor sugere?

R. Eu diria que a prevenção é a área mais complexa e mais difícil das políticas sobre drogas. É a mais fácil de falar e a mais difícil de fazer. Já o tratamento, como está na ponta do problema, tem um espectro de ação bastante limitado. Na Prevenção, no entanto, o espectro de ação é bastante variado. Quando a polícia é eficaz, ela prende a droga, ela prende o traficante e tira a droga de circulação, esta é uma forma de prevenção que é chamada de redução da oferta. A outra abordagem da prevenção é a de redução da demanda, que significa trabalhar com os indivíduos para que eles não queiram iniciar o consumo de substâncias, consumam de forma reduzida ou que parem de consumir uma vez tendo iniciado. Do ponto de vista científico eu posso indicar inúmeros estudos sobre a eficácia de tratamentos, a eficácia de algumas técnicas sobre outras. Na área de prevenção, o conhecimento é muito restrito, infelizmente, só sabemos de pouquíssimos programas de prevenção realmente eficazes e os poucos que conhecemos são monotemáticos, ou seja, tratam uma droga por vez. Não se conhece programas de prevenção de todas as drogas que sejam eficazes, esta é a grande dificuldade para se implementar programas de prevenção. Há uma série de pequenos passos que tem que ser feitos, entretanto, a prevenção do uso de todas as drogas é tão impossível quanto a prevenção do câncer. A prevenção do câncer de mama é de um jeito, o de próstata de outro jeito, o de pulmão de outro jeito, o de estômago tem outras características; portanto, não há uma prevenção do câncer, há prevenção dos cânceres. Da mesma forma, não há prevenção de drogas, há prevenção de drogas específicas. E se isso não for esclarecido, nós vamos ficar também patinando neste campo.

P. Uma questão que está em evidência neste momento é o problema da inclusão social ou reinserção social. O que você defenderia como metodologia de reinserção social?

R. Deixe-me dizer que reinserção social é um termo que é usado com duas conotações. Ele é usado como processo de reinserção social ou como uma meta. Eu entendo que qualquer programa de atenção a álcool e drogas deveria ter como meta última a reinserção social. Não importa qual o grau de recuperação física ou psíquica do indivíduo, a meta do programa deveria ser promover a reinserção social dessa pessoa como um sujeito pleno de direitos na sociedade. Muitas vezes há uma confusão semântica entre a reinserção social e o processo: eu posso pensar que estou fazendo reinserção social quando, na verdade, eu estou trabalhando para a reinserção social. Penso que é inevitável que esta seja a meta última de qualquer programa de álcool e drogas.

P. Quais são os conflitos desta reinserção social. Por exemplo, como lidar com a realidade de uma economia restrita, um setor público restrito, a profissionalização se tornando cada vez mais complexa. Se já é difícil a inserção social para indivíduos que tem educação formal, curso superior, como reinserir (ou inserir) alguém que tem o estigma da dependência química?

R. A primeira coisa é a remoção do estigma. Porque em uma situação de um determinado nível de pobreza não podemos esperar que os nosso pacientes tenham um nível melhor que a maioria da população da classe social a qual eles pertencem. A questão da reinserção social deve ser entendida como centrada na eliminação da exclusão, ou seja, meu paciente tem dificuldades para encontrar um emprego, que está dificuldade não seja porque ele é usuário de drogas. Se a dificuldade que ele tem de encontrar um emprego for igual à dificuldade que qualquer outra pessoa não usuária tiver nós não estamos aqui promovendo exclusão social, nós estamos empregando estigma. No momento que ele perde o direito a ter sua moradia, um emprego, ter uma situação econômica estável, então nós estaremos fazendo exclusão social e trabalhando contra a reintegração social. No entanto, as dificuldades vão existir sempre. Esta dificuldade não é só do Brasil, para a reforma psiquiátrica italiana, que tratava de tirar os indivíduos do manicômio, a grande limitação era habitacional, não havia casas nas comunidades para acolher estas pessoas. Foi um trabalho de anos para encaixar todo mundo numa habitação digna e decente. Isto em um país como a Itália, que não tinha as dificuldades sociais que nós temos. Este é um problema bastante concreto e não podemos esperar uma resposta mágica para a situação socioeconômica que nós conhecemos. No entanto, eu sempre insisto, o ponto mais importante é não excluir o indivíduo só porque ele é usuário de drogas. Dependência de drogas é um diagnóstico clínico e não um defeito social.

P. Qual a sua posição sobre as propostas de legalização da maconha?

R. Realmente temos um problema semântico: legalização de drogas é um problema político, as autoridades podem decidir legalizar ou não proibir o uso de qualquer droga. Sabemos que as políticas proibicionistas nunca funcionaram em lugar nenhum e não vão funcionar aqui também. Isto é distinto da descriminalização do uso não problemático. O representante do Ministério da Saúde disse, na abertura do evento, que em alguns lugares 2/3 da população carcerária está detida por infrações menores à lei de drogas. Quando a consequência da lei se torna mais problemática do que aquilo que a lei tenta coibir eu penso que nós temos que refletir sobre qual é o papel dessa lei.

Nós temos pouquíssimos exemplos no mundo todo de programas de liberalização do uso de determinadas substâncias que estavam proibidas. Tecnicamente falando só Portugal adotou uma lei que descriminalizou o uso de drogas, o que eles chamaram de uso recreativo de drogas; em inúmeros outros países existe se não uma mudança da lei, pelo menos uma prática da aplicação da lei. Por exemplo, em alguns países onde a maconha é proibida a polícia e as autoridades não se importam se o indivíduo tiver consigo até cerca de 25 gramas de maconha, é como se a polícia dissesse: “Eu tenho mais o que fazer do que me preocupar com este pequeno usuário, a preocupação é com o grande traficante ou outros problemas". Na Holanda, qualquer cidadão pode ter em casa até cinco pés de maconha, se ele tiver seis vai para a cadeia, mas cinco pode. O gasto de tempo e de esforço da polícia e das autoridades com esses pequenos usuários termina sendo um desviou de recursos que poderiam ser aplicados em outras ações. No Brasil, e em outros países da América do Sul, houve uma reunião ano passado, organizada pelo Itamaraty, onde a Ministra da Justiça do Equador disse que naquele país 80 por cento das mulheres encarceradas estavam detidas pela posse de menos de dois cigarros de maconha. Uma coisa é reconhecer o papel devastador das drogas; outra coisa é que a infração que é aplicada, tentando fazer com que as pessoas não usem essas drogas, tenha efeitos devastadores.

Todos os resultados das políticas proibicionistas são pobres e complicados, um exemplo clássico foi a guerra entre traficantes nos Estados Unidos, na década de 20, com a proibição do álcool que resultou em altos índices de violência e criminalidade. São situações como essa que queremos evitar que aconteça no Brasil.

2 comentários:

  1. Entrevista excelente.
    But, are you happy ? . Você é felliz Zé ?
    Eu acho que não. .
    I still love you .

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  2. I still love you too e após tantos anos ainda sinto muita saudade.
    Mil beijos.

    Obs: eu também acho que você não é feliz. Perdeu o brilho do olhar.

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