Médico se aproxima dos usuários (Felipe Rau -Estadão)
Psiquiatra usa fantasia para se aproximar dos usuários e
convencê-los a buscar tratamento
O sol começava a sair de
trás das nuvens, por volta das 10h de anteontem, quando o psiquiatra Flavio
Falcone, de 33 anos, formado pela Universidade de São Paulo (USP), abriu a
porta do banheiro da Unidade De Braços Abertos, na Rua Helvetia, no coração da
Cracolândia, centro de São Paulo. Com um nariz de bola vermelha e o rosto
maquiado, usando uma cartola branca, terno de tecido grosso e uma gravata feita
com gaze, ele já havia incorporado o palhaço Fanfarrone.
Pela décima vez nos últimos
dois meses, Falcone repetia o ritual das últimas sextas-feiras. Fantasiado,
aborda os usuários de crack nas ruas lotadas da Cracolândia para ganhar a
confiança deles e convencê-los a iniciar um tratamento que possa livrá-los de
uma das drogas mais consumidas no País. Um em cada três (35%) consumidores de
drogas ilícitas nas capitais do País usa crack, conforme pesquisa inédita da
Fundação Oswaldo Cruz, divulgada na quinta-feira.
As vestimentas do médico são
inspiradas em Zé Pelintra, entidade da umbanda que, segundo uma versão sobre
sua morte, bebia demais e foi atropelado depois de adormecer na linha de trem.
"O palhaço ajuda a estabelecer uma relação horizontal, de igual para
igual, com o povo daqui. De médico, imediatamente se cria uma hierarquia que eu
prefiro desconstruir", diz. Depois dos primeiros passeios, um pandeiro
também passou a fazer parte dos acessórios da peregrinação. Quando os usuários
viam o palhaço, muitos o rodeavam e começavam a cantar com ele.
Logo nos primeiros passos,
Fanfarrone é abordado por uma mulher de cerca de 30 anos, magra, cabelos
castanhos, envelhecida pela droga, que vem conversar sobre astrologia. Ela
pergunta o signo do palhaço, que responde ser de escorpião. A moça conta a
história do marido do mesmo signo, que consome crack com ela. "Eu fumo
para ficar na brisa, para ouvir música, para fazer amor. Ele fuma e fica
violento, fala bobagens, me bate. Quando escorpião dá para ser ruim, sai de
baixo", diz a moça.
Uma liderança da cena local
começa a acompanhar Fanfarrone, depois de comunicada de que haveria fotos e que
o repórter iria junto. Pardal, de 50 anos, foi com um chapéu verde-amarelo,
segurando um acessório de penas coloridas. Usa óculos sem lentes para
"passar uma imagem de respeito", que ele tira durante os bate-bocas
com outros frequentadores.
Pardal estava agitado na
manhã de sexta, sob o efeito da pedra. Contou que a Escola de Samba Tom Maior
havia sido criada em sua casa, na zona sul, e depois se emocionou ao falar do
filho que foi preso aos 15 anos e só agora havia saído da prisão. Assumiu com o
palhaço o compromisso de participar de um grupo de música para o bairro,
projeto ainda a ser apresentado ao poder público.
Fanfarrone segue pela
Helvetia em direção à Rua Dino Bueno, onde fica "o fluxo", termo
usado para definir o movimento de venda e consumo intenso da pedra. Ganha um
boneco de pelúcia de presente de uma moça, que pede que ele guarde o bichinho
com cuidado. Metros adiante, Fanfarrone perde o boneco, levado de seu bolso por
um homem.
A rua está agitada às 10h30.
Barraquinhas de roupas velhas ficam na calçada, num comércio de objetos sem
valor para fazer dinheiro para manter o consumo da pedra. Em outro, são
vendidos carrinhos de plástico quebrados e muitos restos de equipamentos
eletrônicos. Um jovem branco, de cabelos claros e compridos, tenta vender uma
bela jaqueta preta, no meio do fluxo, para obter recursos e comprar mais pedra.
Fanfarrone segue decidido,
passando em meio à multidão efervescente. Para a reportagem, ele diz que a
escolha do palhaço não foi gratuita. "O palhaço, na verdade, deu sentido
para minha vida. Aqui, eu também busco a minha cura", conta. Criado em
Piracicaba, no interior de São Paulo, ele sempre foi uma criança tímida. Seus
pais eram donos de uma escola de balé. Desde os 4 anos, ele assistia,
discretamente, a quase todas as aulas. Depois, repetia as coreografias
escondido.
Sonho. Aos 14 anos, sonhou
que estava tratando de dependentes químicos. Foi quando decidiu ser psiquiatra.
Sempre teve facilidade com os estudos e ingressou na USP. Junto com a Medicina,
passou a fazer aulas de palhaço e conseguiu se livrar da depressão que o
perseguia. "O palhaço lida com as sombras. Ele revela o lado ridículo de
situações que, às vezes, levamos muito a sério. Eu sempre fui uma pessoa
tímida. Passei a rir de mim mesmo, o que foi mais eficiente do que qualquer
terapia. Parece que, hoje, renasci e vivo em outra encarnação", diz.
A sombra dos frequentadores
da Cracolândia, para o palhaço, é o potencial muitas vezes desperdiçado
daquelas pessoas. Fanfarrone continua andando no meio da confusão, com gente de
olhos arregalados por todos os lados, cachimbos de aço sendo acesos, discussões
e dedos em riste, quando, de repente, um cego de roupa social aparece, tentando
passar no meio do fluxo com a ajuda da bengala. Tudo pode parecer muito triste,
mas Fanfarrone acredita no poder terapêutico de transformar em riso a miséria
humana.
Nos primeiros dois meses de
atividade, ele calcula ter conseguido "construir vínculos" com 30
pessoas. Um deles era HIV positivo. Depois de saber que tinha a doença, decidiu
"morrer na Cracolândia". Fanfarrone disse que hoje pessoas com aids
podem sobreviver por anos, desde que medicadas. Ao saber disso, o jovem começou
a se tratar. Mas permanece na Cracolândia.
Fanfarrone evita arriscar um
palpite sobre quanto tempo a região ainda vai conviver com a cidade. Mas
arrisca uma definição sobre o local: "a Cracolândia é a sombra da cidade
de São Paulo".
O Estado de São Paulo
- BRUNO PAES MANSO
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