Tribo urbana usuária de crack
Artigo
Crisvalter Medeiros
No Brasil, pela sobreposição dos esforços acadêmicos dos departamentos das áreas de saúde, são mais conhecidas as abordagens médico-psiquiátricas sobre as drogas, que enfatizam os aspectos neurobiológicos do uso, abuso e dependência de drogas, que as abordagens socioculturais.
A abordagem sociocultural é uma alternativa às políticas de guerra às drogas resultantes das concepções mais tradicionais sobre esse problema.
Essa abordagem define uma cultura da dependência que se organiza através de redes complexas de confederações de “tribos” urbanas de usuários de drogas. Essas tribos são grupos sociais que se juntam voluntariamente de acordo com interesses individuais próprios e o compromisso de se apoiar mutuamente na questão do uso de drogas. As tribos produzem um inter-relacionamento intenso através do tecido social, interligadas que são por pessoas que transitam de uma tribo à outra com muita frequência, possibilitando o compartilhamento coletivo de características de uso de drogas que podem ser referidas como uma cultura, ou uma subcultura para os mais conservadores.
A pesquisadora Lia Sanicola (2008), trabalhando com o conceito de redes sociais, explica que as redes de redes, também denominadas de tribos, oferecem a muitos indivíduos um concatenamento de relações que lhes confere um sentimento de identidade e participação de um conjunto maior. “Apesar de a civilização nos ter feito esquecer muitos de nossos hábitos tribais, estes, de fato, podem ainda hoje, em determinados ambientes, prevalecer sobre a estrutura intrapsíquica dos indivíduos”, resgata.
Desde os primórdios que o homem detém essa característica de se reunir através de tribos. Partindo das tribos primitivas chegamos às formações tribais da pós-modernidade, também chamadas de subculturas ou subsociedades (metropolitanas ou regionais) constituídas de microgrupos que têm como objetivo principal estabelecer redes de amigos com base em interesses comuns. Essas agregações apresentam uma conformidade de pensamentos, hábitos e maneiras de se vestir. As tribos urbanas mais conhecidas são os skinheds, os góticos, e os punks. Pertencer a um desses grupos não significa, efetivamente, ser usuário de drogas, no entanto, o estilo de vida alternativo termina por iniciá-los também nas práticas dessas substâncias (wikipedia).
Segundo o pesquisador americano William White (1996), a estrutura tribal dentro de uma cultura de dependência pode ser analisada através de diversas dimensões, a exemplo da organização das identidades raciais, espacialização etc. Segundo ele, existe uma forte correlação de poder e status dentro de cada tribo de usuários e da cultura da dependência como um todo.
CLASSIFICAÇÃO DAS DROGAS
Países em todo o mundo classificam as drogas psicoativas em conformidade com o status social vigente em cada sociedade. No mundo ocidental as classificações mais comuns, do ponto de vista sociológico, são as drogas de celebração, no caso do Brasil as bebidas alcoólicas, cafeína e os energéticos. As drogas instrumentais, que são utilizadas idealmente de forma prescrita, sendo medicamentosas ou não; além das drogas proibidas, aquelas que se confrontam com os valores e status quo social.
DROGAS DE CELEBRAÇÃO
Assinalando melhor a questão, podemos afirmar que as drogas de celebração abrangem as substâncias psicoativas que são abençoadas pelo consumo social. Tais produtos estão fortemente integrados aos principais rituais da sociedade. São usadas sob a égide do status social e apoiadas pelos mitos de que dão lucro, geram impostos, abrem postos de trabalho, divertem, além de serem símbolos de poder, masculinidade, emancipação social para as mulheres e como respaldo de sociabilidade na adolescência.
DROGAS TOLERADAS
As substâncias psicoativas toleradas são aquelas que a sociedade interdita seu uso mais nunca ao ponto de proibi-las totalmente. O caso mais conhecido no Brasil é o do tabaco, que já foi uma droga de celebração e, atualmente, seu uso sofre forte restrição pelo processo de estigmatização. O processo de tolerância ao uso de drogas é dinâmico, podemos citar o caso da maconha que já sofreu forte repressão pelas autoridades e hoje o seu uso é dissimulado socialmente.
A transição da maconha nos Estados Unidos tem sido bastante dinâmica do ponto de vista sociológico. Por exemplo, a droga foi proibida com a aprovação da lei da Marijuana em 1937, mas ressurgiu como uma droga de celebração pela juventude como subcultura nos anos 60. Até o final dos anos 1970, era considerada como uma droga tolerada com muitos Estados reduzindo radicalmente penas para o porte de uso pessoal, como ocorre no Brasil atualmente. Tornou-se, então, temporariamente disponível como uma droga instrumental tolerada para o tratamento de glaucoma na década de 1980; ao mesmo tempo que era estigmatizada.
Após mais de uma década do declínio do uso da maconha entre os jovens, essa droga está novamente em ascensão nesta década. Há uma dinâmica também interessante com relação à cocaína. Nos Estados Unidos ela que passou por uma transição semelhante de tolerância entre 1980 e 1985, quando aparece como uma substância intoxicante altamente usada entre os ricos e pessoas socialmente proeminentes. Logo em seguida, entra em período de restrição devido, principalmente, ao aparecimento dos subprodutos, a exemplo do carck, de fácil acesso às classes populares.
DROGAS DE USO INSTRUMENTAL
Sobre as drogas de uso instrumental, podemos dizer que são aquelas substâncias que os cidadãos podem legalmente obter apenas em condições muito especiais e em situações claramente definidas com relação a sua finalidade. Para as substâncias mais poderosas, a sociedade vai ditar quem pode ser usuário, especificar a dosagem e a frequência que pode ser utilizada, o método da ingestão e de que forma o uso pode ocorrer. O melhor exemplo de droga instrumental no Brasil é o dos medicamentos usados sob prescrição médica com receita.
DROGAS PROIBIDAS
As drogas proibidas, eis o principal gargalo da sociedade com relação às substâncias psicoativas. As drogas proibidas são substâncias que uma sociedade define como tendo muito pouco ou nenhum valor utilitário e cuja presença é vista como potencialmente prejudicial aos valores da daquela sociedade e da ordem vigente.
Algumas podem ter um valor de uso instrumental restrito, como é o caso da cocaína, mas são proibidas fora destes canais de restrição. As sociedades gastam enormes recursos para eliminar a disponibilidade das drogas proibidas punindo severamente o uso, a posse e a venda dessas substâncias. No Ocidente há um leque de drogas proibidas, a exemplo do LSD, da cocaína, maconha (fase de tolerância), crack, oxi, Ecstasy, ópio, PCP (pó de anjo), etc.
Segundo William White, se afiliar a uma tribo de drogas proibidas significa se desengajar, progressivamente, da sociedade em geral ou, simplesmente, desistir da ilusão de que jamais poderia se tornar parte dessa sociedade.
Não existe uma definição racional para que uma droga seja proibida. A proibição é apenas uma decisão social em decorrência de quem usa esta substância. O álcool, por exemplo, tem uma longa tradição de droga lícita porque sempre foi usado pelos poderosos que já na antiguidade se encharcavam de vinho nos seus bacanais. Já a maconha na América sempre foi usada por setores não-hegemônicos, a exemplo de afrodescendentes e indígenas. Já na Índia pode ser encontrado o uso ritualístico dessa substância. Um dos principais gargalos das drogas ilícitas, do ponto de vista social, é que elas, mesmo proibidas, continuam sendo utilizadas.
Por serem ilícitas não dispõem de tecnologias de controle de qualidade nem de prescrição de uso para evitar efeitos colaterais, como as drogas de celebração e instrumentais. Desta forma, essas substâncias terminam produzindo mais danos do que a doença decorrente da intoxicação, contribuindo para aumentar os problemas sociais, de segurança e de saúde pública.
A legislação brasileira atual, que deixou de prender usuários por porte de drogas para atender suas necessidades próprias de dependência está em processo de tolerância com as drogas ilícitas. No entanto, o processo de estigmatização continua muito forte; ou seja, o Estado pretende controlar o uso de drogas mais pelo estigma do que pela repressão.
Este caminho pode ser menos constrangedor do que a repressão, principalmente para a juventude atual que insiste na experimentação das drogas ilícitas e no seu uso de forma recreacional (celebrativo). No entanto, é um processo tão dispendioso quanto o da guerra às drogas, pois requer um aporte considerável de recursos para controle de qualidade das substâncias (que ainda não está sendo feito), educação de usuários e, principalmente, em decorrência do tratamento da dependência química que tende a aumentar nessas circunstâncias.
A abordagem sociocultural mostra que o problema da dependência química deve considerar também aspectos que não apenas o médico psiquiátrico. O enredamento na cultura da drogadicção e a situação de pertencimento a esse meio podem ser tão importantes para o processo de dependência quanto as condições apresentadas pelas teorias tradicionais.
Portanto, para intervir no problema da dependência, sob esse olhar, se faz necessário construir a cultura do tratamento e a cultura da recuperação. A cultura do tratamento deve estar voltada aos aspectos da formação técnica e das metodogias adequadas. O papel dos profissionais seria o de desenvolver e aprimorar projetos capazes de desengajar o cliente da cultura da dependencia, reforçando, em seguida, a entrada no processo de recuperação por imersão em um ambiente que cria novas formas de pensar, sentir, e se comportar. “Como profissionais do tratamento, nós somos uma espécie de ponte humana que liga uma cultura à outra”, (White, 1996).
Segundo White, a cultura da recuperação é uma rede social informal em que as normas do grupo (padrões prescritos de perceber, pensar, sentir e se comportar) reforçam a sobriedade e a recuperação à longo prazo.
Vale salientar que a cultura da dependência e a cultura de recuperação são como gêmeos que, apesar de se espelharem entre si de várias maneiras, buscam caminhos diferentes – um nutre-se da vida, o outro leva à morte. Mesmo tendo diferentes objetivos, talvez o fato de um se espelhar no outro suavize a transição da cultura da dependência à cultura da recuperação, nas palavras de White.
O pesquisador arremata que: Como a cultura da dependência, a cultura da recuperação é um modo de vida, um meio de organizar a existência diária e um meio de ver as pessoas e os eventos no mundo exterior. É uma maneira de falar, vestir, gesticular, acreditar, trabalhar, jogar, pensar e ver com clareza o que separa aqueles em recuperação daqueles que não estão em recuperação. Como a cultura da dependência, a cultura da recuperação engloba valores, artefatos, lugares, rituais, relações, símbolos, música e arte. A cultura da recuperação, como diz White, constitui um plano de carreira alternativo para aqueles que foram enredados na cultura da dependência.
Bibliografia:
WHITE, W. L. Pathways from the culture of addiction to the culture of recovery: a travel guide for addiction professionale, second editon. Hazelden, 1996.
SANICOLA, LIA. As dinâmicas de rede e o trabalho social (trad. Durval Cordas). São Paulo: Veras editora, 2008.
http://pt.wikipedia.org/wiki/Tribo_urbana
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